terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Migração livre

“A última vez que você veio aos EUA foi em Dezembro. Como é que eu sei que você não vive aqui?”, perguntou o agente da imigração no aeroporto de Newark. “É uma boa pergunta”, respondi.

Acabou por enviar-me para interrogatório mais detalhado na sala dos suspeitos de crimes contra a humanidade (ou pelo menos contra a “estado-unidensidade”). Eu já tinha preenchido o impresso verde, declarando por minha honra não ser culpado de diversos actos reprováveis (sinceramente, nem li as perguntas, e não me envergonho por isso: tal como qualquer terrorista, já sei que as perguntas são ridículas e que a resposta correcta é “Não”), que mais queriam que eu dissesse?





O agente que me entrevistou a seguir tinha um apelido de origem lusa (um apelido incomum, só recordo que terminava em “eira”). Não achei apropriado comentar, já que tratávamos ali de assuntos muito sérios.

Discutimos quase toda a minha vida com razoável honestidade: o que faço (“consultor freelance” pareceu-me mais apropriado que “reformado”), se tenho um cartão de visita ("não"), até quando vou ficar, como posso ter tanto tempo livre para viajar até aos EUA, se faço tenção de trabalhar nos EUA, o que fazia antes, quanto ganho (até pensei que seria difícil não mentir aqui, mas felizmente ainda ganhei uns salários em 2008, além de alguns juros sobre as minhas poupanças), há quanto tempo estou com a minha namorada, onde nos conhecemos, o que ela faz nos EUA, os telefones dela (verifiquei que ele não tomou nota, não fosse ficar interessado em conhecê-la!), quanto dinheiro trazia comigo, cartões de crédito... se eu corria maratonas (ao detectar um artigo que eu estava a ler sobre os efeitos fisiológicos da maratona)... Vá lá, desta vez não me perguntaram que línguas falava (“árabe, pois claro”) nem se tinha treino militar. Pelo meio interrompeu a entrevista e foi falar com alguém (talvez comentar a minha fotografia “taliban”, com barba de vários meses, no passaporte, e/ou o registo feito em entradas anteriores de eu ter passado pelo Afeganistão em 2003?). A certa altura parecia que tinha esgotado as perguntas e que continuava em dúvida sobre o que fazer comigo.


Curioso, não? Os Estados Unidos da América foram fundados por imigrantes que vieram principalmente da Europa para “colonizar” o “Novo Continente”, esquecendo que o continente só era novo para eles e que já cá havia gente antes. Não muito diferente do que os portugueses fizeram no Brasil e outros lugares, os espanhóis no resto da América Latina, os “australianos” naquela enorme ilha que hoje fecham a tantas chaves... Basta reparar na cor da pele das pessoas em muitos destes lugares para suspeitar de genocídio. Há uns anos sentíamo-nos todos com direito a fazer nossos territórios alheios. Em 1494, portugueses e espanhóis chegaram a dividir o mundo entre eles! Uns com maior sucesso que outros, apoderámo-nos de imensos recursos que agora não queremos partilhar. Hoje abundam as fronteiras fechadas, xenofobismo explícito e implícito, consciente e inconsciente.

O que está em causa não é tanto a integridade nacional (seja isso o que for) ou a segurança pública, mas muito mais a nossa segurança material – a garantia de que vamos manter os “nossos” bens, a “nossa” riqueza. Se nos ajuda a ficar mais ricos, o comércio livre é bom. Se nos obriga a partilhar o que temos, migração livre é má. Não formei uma opinião forte a favor da migração livre [a wikipedia tem um artigo com boas ligações sobre o tema], mas como nómada (certamente muito privilegiado em relação a outros exemplos, como refugiados internacionais tentando escapar de genocídios) não posso deixar de sentir grande simpatia pelo conceito e pensar que certos proteccionismos não parecem muito... humanos. Ou justos.

É verdade que a Declaração Universal dos Direitos do Homem não é famosa por ser seguida com muito rigor, mas, enquanto o artigo 13º estabelece apenas o direito à liberdade de movimentos e residência dentro das fronteiras de cada estado, já o artigo 15º menciona o direito de mudar de nacionalidade (não deixando muito claro até onde deveria ir esse direito).


Pelos vistos ainda não foi inventado um leitor de pensamentos, pois não foi desta que fui considerado persona non grata nos EUA. Com cara de "que se lixe", o agente lá decidiu carimbar os meus papéis enquanto dizia "One important question...". Que mais poderia querer saber?? Como eu já o tinha visto carimbar a papelada, nem cheguei a sentir palpitações nesse momento, pensando que inevitavelmente ele me deixaria entrar. E muda de inglês para português: "De que clube você é?" Sinceramente, suspeito que ele me concedeu entrada no país indeciso, dando o benefício da dúvida por termos algo em comum (além de cabeça, tronco, membros, olhos, cor do cabelo e da pele, pelos vistos a língua e algum pedaço de “portugalismo”). Respondi com sinceridade e um sorriso "Não ligo a futebol". A julgar pelas perguntas no impresso de imigração, quem sabe se ele não me negaria entrada caso eu fosse sportinguista e ele benfiquista?


[Se deixarem de ser publicadas novas bulicenas, pode ser que eu tenha sido entretanto capturado pelos senhores da Segurança da Pátria, do Escritório Federal de Investigação, da Agência Central de Inteligência, ou de alguma outra organização mais obscura cujo nome nem sequer o presidente conhece. Com sorte, irei parar ao centro de torturas de Guantánamo e de lá recambiado para Portugal quando o decidirem fechar.]

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Moda forreta

“Primo, há quantos Natais te vejo com a mesma roupa??”. Foi a primeira coisa que ouvi ao entrar na sala onde estavam todos os tios e primos no tradicional encontro familiar de Natal (sem qualquer tom de censura, apenas curiosidade – a minha família é amigável!) .

Enquanto eu pensava se seria verdade que todos os Natais trazia exactamente a mesma roupa, a minha prima, simpaticamente, tentou arranjar uma explicação para me safar: “Ou tu tens lá em casa um monte de roupa igual?”

“Não... é capaz de ser mesmo a mesma roupa”, respondi. “É que parte da minha roupa está agora nos EUA, então acabo por usar a que tenho em Lisboa, que não é tanta.”

Na verdade até tenho roupa a mais em Lisboa, especialmente t-shirts. Quando passo por Lisboa com mais tempo tento fazer uma nova filtragem e escolher roupa para doar. Mas não há maneira de esvaziar o armário. Para habitante de países “ricos” (que não é a referência ideal para muitas medidas), nunca fui pessoa de ter nem de comprar imensa roupa, mas sempre tive muito mais roupa do que a realmente necessária.

Ao viajar pelo mundo tento levar o mínimo de roupa possível, de modo a aliviar a bagagem. Além disso, o meu forretismo inato leva-me a seguir o lema “não compres hoje o que podes comprar amanhã”. Estes dois factores resultam num “stock” de roupas (quanta roupa tenho em cada momento) relativamente pequeno e num “fluxo” de roupas (quanta roupa “passa por mim” ao longo do tempo, ou quanta roupa “consumo”) muito reduzido. Em linguagem contabilística, roupa é para mim um “investimento” (porque dura bastantes anos e portanto é depreciada ao longo do tempo) e não uma “despesa” (não entra simplesmente nas contas do ano como se fosse consumida num período curto).

Até pensava que o meu stock de roupa era razoavelmente pequeno, mas nada como fazer um inventário exacto para identificar oportunidades de optimização. Neste momento tenho comigo nos EUA:

para uso geral:
  • 13 t-shirts (4 de manga comprida)

  • 2 camisolas

  • 3 calças de sarja/jeans

  • 1 calções

  • 8 pares de meias

  • 6 cuecas

  • 2 calções de natação

  • 1 par de ténis para andar (ténis de corrida reformados)

  • 1 par de chinelos
para correr:
  • 2 pares de ténis de corrida

  • 6 t-shirts

  • 3 calções

  • 1 calças

  • 8 pares de meias

  • 2 impermeáveis

  • 2 pares de luvas
para o frio:
  • 1 casaco

  • 2 fleeces

  • 1 par de luvas

  • 1 cachecol

  • 1 gorro

  • 1 calças de pijama
roupa formal:
  • 2 fatos (calças + casaco)

  • 1 calças

  • 6 camisas

  • 5 gravatas

  • 2 pulôveres

  • 1 par de sapatos

À primeira vista, sem ser demasiado extremo, poderia reduzir alguma roupa se decidisse, por exemplo:
  • Deixar de frequentar ambientes formais, cortando a secção “roupa formal” (claro que neste momento, como reformado, não é algo muito necessário, mas por enquanto prefiro manter a opção aberta)

  • Deixar de viajar, permanecendo num país quente ou num país frio, para deixar de carregar roupa para ambos os climas (em geral evito países frios, o que elimina praticamente a secção “para o frio”)

  • Reduzir o número de t-shirts (mesmo se estivesse num país mais quente, poderia facilmente arranjar-me com metade ou menos)

  • Deixar de correr, e cortar o capítulo “para correr” (não é uma opção!)

  • Reduzir o equipamento de corrida (posso facilmente reduzir 1 calções, 3 t-shirts, 4 pares de meias e 1 impermeável; e se não estivesse num país frio dispensaria o outro impermeável, as calças e as luvas; se necessário, poderia também usar só 1 par de ténis)

Os três anos que passei com base no Brasil exemplificam bem o meu “forretismo” em relação a roupa e calçado, que resulta no baixo fluxo (consumo) de roupas. Durante esse período comprei:
  • 1 calças jeans

  • 2 camisas (para trabalhar)

  • 1 calções de natação

  • 4 ou 5 pares de ténis de corrida (esta é a única peça que se pode dizer que eu verdadeiramente “consumo”)

Além disso, como prendas ou ofertas de provas desportivas, recebi algumas t-shirts, 1 calções de corrida e 1 calções de natação.

Como manter um consumo reduzido de roupa? Simples: usando a roupa enquanto ela dura. Por exemplo, ainda hoje uso uma t-shirt que faz 15 anos em 2009 (de uma prova de pentatlo em 1994, daí que eu saiba a idade com precisão). Os meus famosos calções de corrida “vermelhos” devem ter uma idade próxima. Ainda uso uns calções de praia que a minha mãe diz que são de quando eu tinha 8 anos (acho que é exagero, mas talvez tenham uns 20 anos). Tenho dois calções de natação não para alternar o seu uso mas para usá-los ao mesmo tempo, para que as transparências de um sejam tapadas pela opacidade do outro. Durante um ano usei uns ténis com a sola furada, que me obrigava a verificar a probabilidade de chuva antes de decidir calçá-los. Os únicos sapatos que usei para trabalhar durante os três anos no Brasil (todos os dias exactamente o mesmo par de sapatos) foram comprados em 2002, e só definitivamente(?) reformados este Natal (apesar de, confesso, já andar a achar que não estavam em óptimas condições nos últimos 2 anos, mas... para quê comprar hoje o que posso comprar amanhã?). Os dois fatos que uso em ambientes formais foram comprados quando emigrei para o Brasil, em 2004, e estão longe da reforma. Uma das minhas camisas de trabalho furou no cotovelo, por isso tive de começar a usá-la apenas com as mangas arregaçadas. E adoro usar meias rotas – afinal, ninguém as vê e não incomodam nada, portanto cumprem a sua função!


Corrida de aventura em Caraguatatuba (Brasil) - as minhas calças neste tipo de provas (que custaram US$2 no Exército de Salvação) estavam em tal estado que muitas vezes pensavam que tinha sofrido um acidente: "Que aconteceu com você, cara?!"


A moda foi inventada exactamente pelos desenhadores, fabricantes e vendedores de roupa e calçado para estimular as pessoas a comprarem mais do que realmente precisam. (Seguramente, as motivações intelectuais, estéticas e artísticas são importantes, mas a oportunidade de lucro não deixará de influenciar fortemente, mesmo que inconscientemente em alguns casos, as decisões da “indústria” da moda.) Por óbvio interesse destes grupos (e dos grupos socioeconómicos de elevado poder aquisitivo, que se conseguem distinguir pela roupa, ostracizando quem não tem a mesma capacidade de desperdício), comportamentos práticos, poupados, eficientes, que aproveitam bem os recursos do mundo foram considerados muitas vezes deselegantes, estranhos, ilógicos, impróprios, censuráveis, ofensivos, imorais e até ilegais!
  • Usar todos os dias a mesma roupa (é improvável que seja necessário trocar por questões higiénicas, a não ser para peças íntimas e quando faz muito calor)

  • Usar este ano a roupa do ano passado (é improvável que não esteja em bom estado)

  • Repetir a roupa do último casamento (qual é o problema?!?)

  • Usar roupa de verão durante o inverno (mesmo que as temperaturas o recomendem)

  • Usar roupa “informal” em ambientes “formais”, ou vice-versa (porque é que uma roupa há-de ser “melhor” que a outra?)

  • Não usar roupa nenhuma em público (se não é imoral nem ilegal para todos os outros animais, porque há-de ser para os humanos?)

Quem seria o homem ou a mulher no seu perfeito juízo que formularia tais convenções repressivas e desperdiçadoras?? (Não incluo nesta classificação convenções práticas, úteis, bem pensadas, como por exemplo o uso de batas e outras garantias de higiene por médicos e cozinheiros, ou peças protectoras por quem trabalha em ambientes de risco, como fábricas ou obras.)

Confesso-me totalmente formatado por 32 anos de viver vestido em sociedade, já sem qualquer ambição de gostar da ideia de andar nu em público, por muito calor que faça (senhoras idosas, podem continuar a sair à rua descansadas, sem risco de ataque cardíaco!). Decidi aceitar algumas outras convenções, embora discorde delas, por considerá-las um preço baixo para entrar em alguns jogos que decidi que quero jogar. Por exemplo, nunca me aventurei a ir de calções e t-shirt a reuniões com os meus clientes de consultoria, apesar de desgostar particularmente de roupa formal: dá trabalho a transportar, é cara, soturna e complicada de lavar (a única vantagem é que, pelo menos para homens, acaba por ser um uniforme que ajuda a não dedicar tempo nenhum a pensar no que vestir). Por vezes, para descontrair em algum ambiente demasiado sério, ponho-me a imaginar as pessoas à volta da mesa como macacos de fato e gravata (a la Planeta dos Macacos).

Também costumo ir relativamente “bem vestido” (de camisa, em vez de t-shirt, e às vezes de fato) a cerimónias como casamentos e baptizados, porque – quem diria – é possível que o meu amigo ou familiar, por muito próximo que seja, fique ofendido se eu for mais relaxado! Incrível como podemos colocar a convenção totalmente descabida do que “fica bem” acima do bem-estar, do conforto, da descontracção do outro! Será um sinal de amor, de amizade?

Que saudades dos bons velhos tempos em que passava o verão de calções, incluindo aulas e exames no Técnico, e do ano do MBA, de calções no calor de Singapura. Felizmente, em muitos estabelecimentos de ensino ainda existe algum sentido prático e abertura às preferências de cada um (apesar de haver quem considere isso um sinal de desleixo, bagunça, indisciplina, anarquia, e até de má qualidade de ensino e/ou aprendizagem).

Não tenciono lutar activamente contra este sistema repressivo (sinto que não é aí que devo investir as minhas energias). Quem sabe qualquer dia o Greenpeace começa a manifestar-se à porta dos grandes festivais internacionais de moda para desafiar a ditadura dos armanis, valentinos, chanéis, dolces e gabannas deste mundo. Ou talvez oiçamos as Nações Unidas decretarem “o fim da moda” com um novo artigo na Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Todo o ser humano tem direito a vestir ou não vestir o que entender, onde e quando quiser.”

Até lá, dentro do possível, manterei a minha moda forreta e não deixarei a minha auto-estima e felicidade reféns da moda do desperdício, das aparências, das convenções irracionais, procurando sempre aceitar as opções de cada um - as mais e as menos convencionais.

sábado, 13 de dezembro de 2008

Tropa de Elite

Rio de Janeiro. Favelas. Criminosos. Universitários charristas. Polícia corrupta. Novos recrutas idealistas. Forças especiais especialmente violentas – abuso ou necessidade? Pessoas certas no lugar errado. Pessoas erradas no lugar certo. Um mundo fora de controlo.

Tropa de Elite - um filme brutal, não só pela realidade nua e crua, imagens chocantes e linguagem sem eufemismos. Também porque é um filme “chapadão nas fuças”, sobre responsabilidade: a uma escala maior ou menor, quanto é que eu contribuo para a podridão do sistema, qualquer sistema? No Brasil, em Portugal, onde quer que seja. No trabalho, na escola, no desporto, na família... Na minha relação com o Estado, com as “autoridades”. As minhas decisões contribuem para um mundo melhor, mais justo, mais respeitador? Ou estou a alimentar o jogo sujo que cria desigualdade e faz de uns a elite e de outros a escumalha?



quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Inspiração

Às vezes temos momentos difíceis. Parece que nada nos corre bem. Que não somos capazes de cumprir os nossos objectivos. Ficamos tristes, frustrados. Até começamos a acreditar que certos objectivos são simplesmente impossíveis. Humanamente inalcançáveis. Que o nosso corpo, mente, coração ou alma nos limitam e não nos proporcionam as capacidades necessárias para chegar lá. Ou, quando o nosso ego é mais forte, facilmente encontramos explicações exteriores, somos muito criativos a gerar desculpas: não tive sorte, o vento estava contra, o exame era absurdamente difícil, “eles” não fizeram o que lhes competia...

A inspiração certa pode ajudar a superar estes momentos. Podemos encontrar inspiração em nós próprios, visualizando situações anteriores em que nos conseguimos superar e obtivemos sucesso, talvez até para nossa própria surpresa. Ou inspiração em pessoas próximas: um familiar, um amigo, um professor, um colega que parece sempre conseguir chegar aos seus objectivos, dos mais básicos aos mais ambiciosos. Ou em figuras públicas, históricas ou actuais, reais ou fictícias. O importante é descobrir como converter momentos difíceis em força e sucesso.

Talvez não seja assim tão impossível ficarmos mais fortes e chegarmos mais alto e mais longe. Afinal, a maioria de nós tem duas pernas, dois braços, dois olhos, um cérebro e um coração – tudo a funcionar razoavelmente. E mesmo que nem tudo funcione não quer dizer que não consigamos chegar lá. Na ParalympicSport.TV (também no Youtube) podemos encontrar bons exemplos de pessoas que se superam apesar de nem tudo funcionar perfeitamente, como o paraolímpico português Carlos Lopes, com quem me cruzei tantas vezes enquanto corríamos no Estádio Universitário:



segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Nómada

“¿Usted dónde vive habitualmente?”

Pela terceira ou quarta vez em poucos dias a mesma pergunta complicada!

Desta vez menti sem qualquer pudor: “Em Portugal”.

Afinal, tenho passaporte português e neste momento não sou emigrante legal em nenhum país (fora do espaço Schengen). Não chego a ser o que os estado-unidenses chamam um “illegal alien” já que tenho andado a passear pelo mundo com visto de turista, sem violar prazos nem condições.

E quando o rapaz no check-in para o voo Barcelona-Nova Iorque me fez a recurrente pergunta não convinha responder “em nenhum lugar” (a minha sincera resposta habitual) e muito menos “em Nova Iorque” (verdadeiro nos últimos dois meses, mas terrivelmente suspeito para alguém que me pode negar o cartão de embarque para os Estados Unidos).

Como alguém comentou um destes dias, desde 2003 é necessário um GPS para acompanhar o meu paradeiro. Até há pouco tempo não tinha pensado quão estranhos podem parecer os meus hábitos nómadas. De facto, depois de reparar nas perguntas e olhares intrigados de várias pessoas, incluindo amigos próximos, percebi que se eu não me conhecesse tão bem também teria dificuldade em entender como é que alguém pode mudar tão frequentemente de “casa” (“casa” definida como o lugar no qual passo a maior parte do meu tempo). Decidi listar onde vivi nos últimos seis anos (lugares em que passei pelo menos a maior parte de cada mês) e fiquei surpreendido ao verificar que não fiquei mais do que uns seis meses em cada lugar.





Porquê viver assim, sempre de um lado para o outro?
Porque sim, porque gosto de viajar, de conhecer novos lugares e culturas. Sim, tenho saudades da família e dos amigos em cada ponto do globo, especialmente em Portugal, mas a novidade e as experiências fantásticas pelo mundo, a aprendizagem, as interacções com as pessoas, amigos ou desconhecidos, continuam a alimentar o meu nomadismo. E como é bom voltar de vez em quando a Lisboa e apreciar como nunca a cidade espectacular, os amigos de sempre e para sempre, a proximidade com a família.

Como é possível viver assim? Essas viagens não ficam muito caras?
Não é tão complicado do ponto de vista financeiro; antes pelo contrário, o nomadismo pode até ser uma forma de poupar. Passei grande parte dos últimos anos a trabalhar como consultor em projectos com duração de um a seis meses. Sempre me voluntariei para fazer projectos “fora de casa”, para poder conhecer novos lugares. Fui a trabalho a Timor-Leste, Afeganistão, Brasil, Porto Rico, México, El Salvador, Dubai, Chile, Colômbia, Itália, Portugal, Espanha, Estados Unidos, Índia... Os voos, alojamento e alimentação nesses lugares foram obviamente reembolsados, dado tratarem-se de viagens de trabalho, portanto pude poupar grande parte do meu salário.

Quando é que vais parar?
Quando me cansar. Quando concluir que prefiro estar parado a estar em constante mudança. Vejo algumas vantagens em parar (e algumas desvantagens), como poder estar mais com quem queira estar (desde que partilhemos o mesmo lugar – será complicado estar com pessoas de diferentes nacionalidades), ou poder comprometer-me mais em projectos profissionais, desportivos ou outros que exijam estabilidade geográfica (mas ficar mais limitado para aqueles que exigem mobilidade). Por enquanto, as vantagens da vida nómada superam claramente as desvantagens.

Onde é que vais parar?
Não faço a mínima ideia... Talvez no cemitério? (Mas preferia ser incinerado, depois de reciclado o mais possível.) Vamos ver onde a vida me leva!






Marcha dos Desalinhados - Delfins