(A minha primeira: Maratona de Lisboa, 26/11/00)
Tiro de partida.
Começo a correr, bastante bem colocado junto da linha de partida. Ainda assim, vão muitos atletas mais lentos à minha frente, que começo a ultrapassar correndo pelo passeio da Rua do Ouro.
Sinto-me solto e descontraído e penso: A que ritmo é que estarei a correr? Talvez uns 4’20” ou 4’30” por quilómetro...
Após a Praça do Comércio passamos pela placa do 1º km. Vejo a passagem no relógio: 3’42’’!!! Bom, ou este quilómetro foi curto ou eu estou cheio de pica... vamos ver o 2º km”
Sinto-me bem. O tempo não está mau: há uma chuva constante tipo spray e o vento não é muito forte.
Os pensamentos positivos, de satisfação pelo que estou a fazer, fazem-me sentir agradáveis descargas eléctricas ao longo da coluna vertebral, e de vez em quando fico com a pele de galinha.
As posições dos corredores começam a sedimentar-se e começam a formar-se grupos aos vários ritmos.
Passo o 2º km e o relógio marcou um split de 3’44”: Uou... segura os cavalos! Estou mesmo cheio de pica. A adrenalina faz maravilhas!. Tenho que abrandar. Afinal, recomendaram-me começar pelos 4’20”... Já só faltam 40 km, penso, brincalhão.
Concentro-me em desacelerar o andamento e o 3º km já vem a 3’52”. Está melhor... Mas tenho que entrar nos 4’/km, que isto não é andamento para mim.
Ao 4º foi de vez: 4’00”. Agora é só manter.
Este andamento parece extraordinariamente fácil e descontraído. Daí até ao 36º km mantive sempre o ritmo planeado: à volta dos 4’/km com ligeiras oscilações.
Pelos 5 km, o Pedro Pinheiro passa por mim: “Estás bem? Vais para quanto?”. Vai com o objectivo de 2h40’... Por isso, nem penso em arriscar acompanhá-lo: logo se vê se terei energias para andar mais rápido no fim.
Quase nos 7 km, ao pé do CCB, passo pelo João e pela Estela. A energia era muita e até dava para acenar com os braços a chamar-lhes a atenção. “Só faltam 35 km!”, grito, muito bem disposto.
Em Algés está o meu pai a apanhar chuva.
Dou a volta na recta do Dafundo e penso: 1/4 de maratona já lá vai...
Em sentido contrário vem um atleta vestido de Pai Natal. “Força, Pai Natal!”, grito a animá-lo.
Junto ao CCB, lá estão o João e a Estela, já acompanhados pelo Matus e pela Rita. Continua a boa disposição e até os aviso de que só passarei ali novamente uma hora depois.
Os quilómetros vão aparecendo rapidamente e a corrida está a passar-se muito bem.
Ao pé da FIL estão de novo o João e a Estela.
Passo aos 16 km. Já só faltam 26...
Em Santos estão a chegar o João e a Estela.
E entramos de novo na Praça do Comércio, Rossio, Rua do Ouro... Os atletas da meia-maratona seguem à direita para a Praça do Município. Os maratonistas seguem para mais uma volta.
Passo aos 21 km num tempo fantástico: 1h22’53”. Assim dava com certeza para baixar as 2h50’, e, quem sabe, fazer até perto das 2h45’! Até aqui não custou nada!
Nesta segunda volta o vento contra começa a sentir-se mais forte. Talvez seja apenas o maior cansaço...
No Cais do Sodré estão o João e a Estela outra vez. (Estão a esforçar-se imenso!) O João oferece-me abastecimento, mas prefiro tê-lo “lá ao fundo”, quando passar em Algés.
Pelos 23 km começo a sentir uma certa indisposição no estômago, que me leva a deixar de ingerir Isostar e a beber pouca água... Isto é parte da explicação para o que me aconteceu mais tarde.
Nessa altura arranjo um companheiro de corrida: calhou estarmos a correr à mesma velocidade e acompanhamo-nos lado a lado. Nem sei se lhe vi bem a cara, só sei que levava equipamento vermelho e que era um pouco mais velho, talvez na casa dos 40.
Por volta dos 26 km a indisposição é maior e começam a vir-me coisas à boca... Após bastantes convulsões, acabo por vomitar algum lastro, mantendo sempre o andamento dos 15 km/hora (nunca pensei que fosse possível)! Começo a sentir-me melhor. O meu colega de corrida não pareceu demasiado impressionado com tudo isto. Felizmente, não havia mais corredores por ali, e muito menos público.
Passo pela Rita e pelo Matus, junto ao CCB, mas já com menos energias para acenar.
A seguir vem Algés, e já tenho lá uma grande claque: pais e alguns outros familiares.
Logo a seguir, pelos 29 km, começo a sentir uma “dor de burro” intensa. Consigo manter o ritmo, graças também à referência do meu colega, mas é uma dor bastante incomodativa, que me obriga a levar a mão direita a pressionar o abdómen.
A dor só passa 2 ou 3 km depois, já após a viragem na recta do Dafundo (que me pareceu mais longe do que na primeira volta... mas era com certeza o factor cansaço a funcionar).
De novo em Algés, a sentir necessidade de fazer um esforço considerável por manter o ritmo. Agora o João e a Estela também se juntaram ao grupo. A Estela passa-me uma garrafa com a minha bebida de água, frutose e limão, mas não sou capaz de beber mais que um golezinho.
Começo a sentir as energias a depauperarem-se e a lembrar-me de que era suposto a maratona ser difícil. Pelos vistos estava a chegar a hora de sofrer. Esforço-me cada vez mais por manter o ritmo e tentar distrair-me para os quilómetros irem passando...
Passo pelo CCB e o grupo de apoio de Algés está mesmo a chegar, mas não tenho energias para mostrar que os vi. Passo pelo Matus e pela Rita e acho que ainda levantei a mão...
As pernas estão duras... e começo a sentir falta de energia no resto do corpo. Parece que todo o corpo está a trabalhar para as pernas. Os braços só têm energia para oscilar ao ritmo da corrida e o próprio cérebro parece começar a ficar em modo stand-by...
A partir dos 35 km já só penso na contagem decrescente a cada placa de sinalização da distância, ansioso por atravessar a meta e pôr-me a descansar. Essa imagem dá-me um pouco de alento, mas não me retira o imenso cansaço. Nessa altura penso onde é que param os arrepios de adrenalina, e percebo que me resta sofrer até à meta.
Após o abastecimento junto à estação da CP de Belém, perto dos 36 km, começo a descolar do meu companheiro. Não consigo manter o ritmo. Sinto o meu estilo de corrida a alterar-se, com dificuldades em levantar os joelhos.
Junto à FIL, o João e a Estela dão-me apoio de novo, mas as palavras de incentivo já não me conseguem pôr bem disposto, e de certeza que eles notam o sofrimento na minha cara. O João pergunta se preciso de boleia para casa e só consigo levantar o polegar da mão direita a tentar responder afirmativamente.
Passo os 37 km (4’16” – faltam 5...), os 38 (4’24” – faltam 4...), os 39 (4’48” – faltam 3...), e estou cada vez mais apagado... Sinto dificuldade em focar os olhos e já só mantenho o olho esquerdo aberto. O ritmo é cada vez mais lento, mas ainda parece dar para um tempo um pouco abaixo das 3 horas. (Aos 39 km registei 2h37’ no cronómetro.)
Chego à Praça do Comércio já meio zombie. Pouco metros percorridos, sinto-me desfalecer completamente, sem força nenhuma nas pernas. O cérebro ainda funciona o suficiente para levar as mãos à frente enquanto me aproximo do chão, e fico sentado no meio do alcatrão. Sinto-me como se estivesse num sonho, apenas semi-consciente.
Alguém se aproxima prontamente a ajudar-me. Pergunta-me se estou bem e ajuda-me a levantar. Penso que primeiro apareceu um rapaz e depois uma rapariga. Mantenho-me em pé e a andar, apoiado pela rapariga, enquanto o rapaz fala em chamar uma ambulância. Só penso na tristeza de acabar assim, de uma forma tão deprimente, sem chegar ao fim e metido dentro de uma ambulância. Penso em especial nas pessoas que me deram apoio, no terreno e à distância. Recordo-me de desejar que não estivesse ali ninguém meu conhecido, para não me verem naquele estado.
Querem que eu ande para trás, a caminho de onde virá o apoio. Chego a pensar que não tenho alternativa, mas insisto, com a pouca consciência que me resta, em que estou perto da meta e posso acabar a andar... A rapariga condescende (não sei como é que se deixou convencer por um atleta inconsciente!) e ajuda-me a caminhar na direcção da meta.
Entretanto acho que me deram uma lata de Isostar. Não, era uma daquelas embalagens de meio litro de uma outra qualquer bebida “desportiva”, tipo Gatorade ou qualquer coisa assim (não me lembro de ver a embalagem, só de a ter nas mãos e de a apertar para beber até ao fim).
Passados talvez 200 metros (mas quem é que ainda confia na minha noção de espaço-tempo nesta altura?), ela pergunta-me se estou melhor e se já consigo andar sozinho. Apesar de me sentir horrivelmente, claro que respondi que estava melhor e que seguiria por mim – nem pensar em desistir, e tinha que a convencer de que estava mais ou menos, para ela me deixar continuar!
Sigo então para a Rua da Prata, sem ver metade do ambiente envolvente, com toda a minha energia aplicada no reconhecimento mínimo do percurso e numa marcha desequilibrada mas (acho eu!) com algum ritmo. Lembro-me de olhar para o meu cronómetro a marcar 2h50’ e pensar que talvez ainda desse para baixar as 3 horas. Faço a Rua da Prata, passo pelo Rossio e começo a descer a Rua do Ouro. Entretanto vi o relógio a marcar 2h59’: lá se foram as 3 horas....
A certa altura, alguém, vendo o meu estado, dá uns gritos de incentivo dizendo que faltam poucos metros. Eu entusiasmo-me e começo a correr (suponho que devagarinho) totalmente desengonçado.
Lembro-me de virar à direita para a Praça do Município.
Não me lembro de cruzar a meta. Desde a Praça do Comércio até aqui parece que foi tudo um sonho. Procurando nos confins da memória, recordo-me, de facto, de ter chocado com umas grades e umas fitas: suponho que era a zona após a meta...
O sonho acabou quando sinto alguém ao pé de mim a ver como estou. Oiço falar em fazerem-me um teste qualquer e suponho que me picam para medir a minha glicemia. Diagnóstico: hipoglicemia. Ouvi falar num valor de “46” e alguém a dizer “Este é dos duros...”. Não percebo se me estão a chamar “burro” por não ter parado ou se acham que fui forte por ter aguentado o esforço...
Pedem-me para dar o braço para me espetarem uma agulha. Pergunto: “É para meter ou para tirar?”. Respondem-me que me vão injectar “açúcar”.
Alguém me pergunta o nome. “Lá estão estes tipos a testar como estou”, penso. Lá consegui dizer e repetir o meu nome.
Pergunto se cheguei a acabar a maratona. Respondem que não sabem. Olho para o relógio e vejo que o cronómetro vai nas 3h12’. Isso significa que não estou ali há assim tanto tempo e que se cheguei à meta fiz pouco mais de 3 horas...
Começo a perceber melhor onde estou. Estou deitado numa marquesa, dentro de uma tenda branca. Consigo levantar a cabeça e vejo a minha mãe e a prima Luísa a olharem para mim. Assim que fui capaz mostrei-lhes um sorriso, a ver se ficavam mais descansadas.
Dão-me uma lata de Isostar, que bebo rapidamente.
Começo a sentir o corpo todo e as capacidades mentais a voltarem ao activo.
Vejo que me retiraram o destacável do peitoral, o que indica que cheguei à meta. Vá lá...
Sinto as pernas duríssimas, com os músculos altamente contraídos e doridos.
A medo, testando as minhas capacidades, sento-me na marquesa. A doutora vem falar comigo, dizendo que o meu organismo tem tendência a baixar muito os níveis de glicose no sangue, e que não estou preparado para aqueles esforços. O meu fígado não consegue acompanhar as necessidades energéticas... Recomenda-me ir para casa almoçar massa, beber muitos líquidos e descansar. Oferece-me uma laranja, que consigo descascar e comer.
Então, achei que já estava capaz de me levantar e pedi licença para ir para casa.
Lá fui ter com a famelga, a quem agradeci o apoio e pedi desculpa por acabar naquele estado.
Ao que parece, o meu tempo final foi de 3h03’. Pelos vistos demorei 26 minutos nos últimos 3 quilómetros...
O balanço é positivo: conheci novos limites do meu corpo, e finalmente percebi que o “muro” existe mesmo! Como estava meio inconsciente, olhando para trás, o sofrimento não foi assim tão grande. Custou mais tentar manter o ritmo entre os quilómetros 34 e 39... Provavelmente deveria ter abrandado um bocado a partir dos 32... O meu problema foi alguma dose de inconsciência que me levou a não respeitar devidamente a “senhora” maratona...
A próxima vai ser melhor: mais treinos longos em cima, o organismo mais adaptado a guardar reservas energéticas... E, então sim, para as 2h50’.
Já comecei a “meter quilómetros” para a Maratona de Madrid, a 29 de Abril!