domingo, 26 de abril de 2009

Santos pecadores

Confesso que não sou grande fã de “santos”. Ou de heróis. Muito menos de ídolos. Vejo valor em mantermos referências, exemplos, pessoas ou seres, actuais ou passados, próximos ou longínquos, que nos inspiram a sermos melhores. E nem importa demasiado se essas referências são ou foram exactamente como as imaginamos: o que importa é que a sua existência tal como a concebemos tenha efeitos positivos. Também não importa se essas referências são perfeitas (especialmente porque a “perfeição” é como as situações ideais nos modelos científicos: não existe): basta que possuam uma qualidade inspiradora (e que não possuam outras causadoras de escândalo).

Não pude deixar de reflectir sobre o tema da santidade ao ver Nuno Álvares Pereira hoje oficialmente reconhecido como santo pela Igreja Católica. Como é isso de a Igreja Católica decidir que alguém é santo? Porquê fazê-lo? Para quê? É bom, mau, ou nem por isso?


Quem é santo?

Se eu bem entendo o imaginário católico, santo é todo o ser humano que está em comunhão com Deus, que está no céu (e portanto não está terrenamente vivo, nem está no limbo, purgatório ou inferno). Portanto, aceitando esta definição, os santos oficialmente reconhecidos (aqui uma boa lista) são (espero!) um infinitésimo da brutal massa de santos existente.


Como são validados estes santos “oficiais”?

Segundo Catholic Online, o processo de canonização que a Igreja Católica segue para nomear um santo é utilizado desde o século X, para colocar ordem na até então “democrática” aclamação popular. Os procedimentos actuais foram aprovados pelo Papa João Paulo II em 1983 (na altura abolindo a famosa figura do Advogado do Diabo). A instituição responsável pelo processo é a Congregação para as Causas dos Santos. Pode ser candidato a santo alguém morto há mais de cinco anos cuja reputação popular de santidade tenha vindo a aumentar. Resumidamente, um santo passa por três etapas para ser reconhecido:
- Venerável: o Papa proclama o candidato venerável, após avaliação da sua vida e obra
- Beato: a pessoa é beatificada, após verificação de um milagre póstumo por sua intercessão ou da sua condição de mártir (ter morrido pela causa religiosa)
- Santo: o beato é canonizado, após verificação de um segundo milagre

O mais estranho neste processo é a verificação de milagres. Por definição, é impossível provar cientificamente um milagre, portanto tem de ser baseado em... fé? A Congregação para as Causas dos Santos investiga os supostos milagres e exclui os que sejam explicáveis cientificamente. Obviamente, ser inexplicável cientificamente é uma condição necessária mas não suficiente para um evento ser sobrenatural. Tendo em conta que a ciência está em constante mudança, um fenómeno inexplicável hoje talvez não o seja amanhã. Porque é que a Igreja se há-de expor dessa forma a errar?


Porquê reconhecer santos?

Os santos são uma poderosa ferramenta de marketing. Alguém que levou uma vida verdadeira e profundamente boa, de felicidade, amor, boas energias, radical abertura e entrega ao próximo, à “salvação do mundo”. Alguém com quem as pessoas “normais” se podem identificar, parcial ou integralmente. Alguém que inspira boas vidas: completas, equilibradas, plenas de paz e amor, felizes e geradoras de felicidade. Os santos são claramente úteis pelo bom exemplo que representam, pelas mensagens que transmitem.

Porquê reconhecê-los oficialmente? Porque não deixar os fiéis decidirem quem os inspira, sem intervenção da Igreja? Talvez haja outras razões, mas certamente será para pôr alguma ordem no processo, para garantir que os exemplos seguidos pelos católicos estão em conformidade com as crenças da Igreja. Mas será necessário um processo tão complexo e consumidor de recursos? Na minha irrelevante opinião, não. Bastaria um processo mais ligeiro de validação, de sugestão, de recomendação, sem nomeações oficiais.


São Nuno




foto: Vaticano



Nuno Álvares Pereira é uma personagem da história de Portugal que tem obviamente inspirado muitos portugueses. Nunca me senti particularmente atraído pela personagem (não, não é por alimentar a ambição de me tornar o primeiro São Nuno!). Para mim sempre foi um guerreiro conhecido por andar por aí a matar vizinhos do reino de Castela, defendendo a independência de Portugal (que na altura era um país mais ou menos tão jovem como os EUA hoje, com 240 anos). Espero que o seu militarismo não tenha sido uma razão para a sua canonização, apesar de o Papa se ter referido a ele como “herói e santo de Portugal”. Quanto a se ter tornado monge carmelita, abdicando dos seus bens, nos últimos 8 anos da sua vida, não é uma decisão vulgar, mas por si só também não deveria ser razão de devoção.

Sinceramente, não sei que exemplo nos dá a vida de Nuno Álvares Pereira. Para mim, o balanço é negativo. Nunca ouvi falar de qualquer arrependimento pelos seus homicidas actos militares (antes pelo contrário, consta que ele esteve sempre disponível para lutar pelo país), o que só por si, à luz dos mandamentos, deveria condená-lo ao inferno, não? Ou que raios significa aquele “Não matarás”? Será, ao bom estilo do Antigo Testamento, “Não matarás a não ser que seja estrangeiro”? Até poderia compreender um argumento a favor da defesa da independência se os invasores tivessem intenção de escravizar e martirizar os portugueses, mas não era certamente o caso (os galegos, bascos e catalães não parecem ser povos em sofrimento).

Desejo que os devotos deste novo santo reparem no exemplo positivo que os leve a uma vida santa e critiquem os comportamentos duvidosos para que não se infiltrem no efeito inspirador.


Santos pecadores

É curioso como tantas histórias associadas ao catolicismo repetem o padrão do terrível pecador que se converte e se torna modelo de santidade. Essa é a história recorrente de muitos santos que passaram anos importantes das suas vidas a fazer asneira (por exemplo: Santo Agostinho playboy; Santo Inácio vaidoso, mundano; São Paulo perseguidor de cristãos) e, de repente, uma visão, uma iluminação, a conversão. Nos filmes, é aquele momento em que surgem intensos raios de sol entre as nuvens, ouvem-se celestiais acordes de órgão, um aleluia... (Como na cena dos Blues Brothers que podem ver abaixo.)

O livro Saints Behaving Badly: The Cutthroats, Crooks, Trollops, Con Men, and Devil-Worshippers Who Became Saints (Santos Mal Comportados: os assassinos, escroques, prostitutas, condenados, vigaristas e satanistas que se tornaram santos) descreve as vidas de 28 pecadores que se tornaram santos. Li vários capítulos online (na Amazon, clicando em “Look inside!” e depois clicando sucessivamente em “Surprise Me!” e na mudança de página). São resumos bastante superficiais da vida de cada pessoa, que valem pouco por si só. Tratando de pessoas que mudaram profundamente a sua vida, senti falta de talento literário para transmitir o radicalismo dessas conversões. Mas, como conjunto, o livro transmite uma importante mensagem de esperança: se até um pecador tão pecador pode ser santo, porque não eu?

Como acontece essa transição de pecador a santo? Em muitos casos, há um evento específico na vida do pecador (um acidente, uma doença, uma perda) que o obriga a parar, a reflectir, a colocar a vida em perspectiva e optar por viver a sério. Noutros casos, é uma conversão progressiva, fruto do contacto com uma actividade ou pessoas que influenciam a mudança. Apesar de não ter tido o privilégio de experimentar uma vida de intenso pecado (pelo menos na minha bitola), percebo que as boas mudanças vêm mais do silêncio do que do ruído, mais da paragem do que do movimento. E também do ambiente em que vivemos: se não mantivermos agudo espírito crítico, é fácil que nos tornemos iguais àqueles com quem convivemos habitualmente – se não for uma opção consciente, talvez não corresponda ao nosso caminho de felicidade. Daí que recomende vivamente, a qualquer pessoa, religiosa ou não, que queira viver bem, paragens frequentes: uns segundos ou minutos por dia de meditação, oração ou outra forma de parar, um sábado, domingo ou outro dia de descanso, um retiro, caminhada espiritual, férias realmente merecedoras desse nome...


Santos “normais”

Um tipo de santo que parece menos frequente é o de gente “normal” com comportamentos extraordinários. Os poucos santos que consigo recordar (eu sei que não sou muito culto) estão todos associados a ordens religiosas. Então afinal não há esperança! Se para eu ser santo tenho de entrar num convento, 'tão mas é malucos! E se não tenho qualquer hipótese de ser santo, então vou mas é pecar à vontade! Perdido por cem, perdido por mil!

Calma, calma, calma! Há esperança. Consta que existem por aí alguns santos leigos. O livro Secular Saints: Two Hundred Fifty Canonized and Beatified Lay Men, Women and Children consegue listar 250. Hmm... óptimo, então talvez não seja necessário entrar para o convento...

Então e os santos “normais” não reconhecidos oficialmente? Os santos parciais, que talvez sejam inspiradores em determinado aspecto das suas vidas mas criticáveis em outros? São as pessoas com quem nos cruzamos todos os dias. As personagens que nos fazem pensar, que nos obrigam a parar, a reflectir, que nos inspiram, que nos desafiam a melhorar. Se tomarmos como referência o melhor de cada pessoa à nossa volta, rapidamente seremos todos santos!

Que os santos que encontramos diariamente, canonizados, populares ou anónimos, católicos ou infiéis, nacionais ou estrangeiros, nos inspirem e responsabilizem a todos, crentes, agnósticos ou ateus, a sermos melhores a cada dia, a cada hora, a cada instante!



E aqui fica um exemplo de “iluminação” num dos melhores filmes de sempre:


sábado, 18 de abril de 2009

Folha Forreta

No seguimento da bulicena sobre cobertura financeira, gostaria de partilhar uma ferramenta muito simples mas tremendamente útil:

Folha Forreta®

A Folha Forreta é um ficheiro de Excel que serve para registar todas as despesas e receitas de uma pessoa (ou de um agregado familiar).

Registar todas as despesas?? Para quê??! Obviamente, para optimizar a gestão das nossas finanças. Se achas que podes melhorar a forma como geres as tuas, e tens interesse e motivação para investir no assunto (é perfeitamente legítimo decidir que não vale a pena), recomendo:

1. Durante um mês (no mínimo), regista exaustivamente toda e qualquer despesa e toda e qualquer receita, classificando-as em categorias e sub-categorias. Só este exercício já terá o efeito provavelmente benéfico de te tornar consciente de todas as tuas transacções (e talvez te fartes tanto do exercício que por vezes desistas de uma compra só para não a teres de registar!) – primeiro passo para as poderes analisar e questionar. A ideia não é fazer-te sofrer, mas sim positivamente tomares as rédeas das tuas finanças pessoais. Algumas dicas:

  • Para os mais distraídos, apaga os dados que incluí na Folha (são só para exemplificar como poderia ser o preenchimento e que tipo de relatórios são gerados)

  • Não registes receitas se não vires benefício nisso (eu não costumo registar... mas também não tenho tido nada para registar)

  • Obviamente, adapta ao teu gosto as minhas sugestões de categorias e sub-categorias, pré-incluídas na Folha Forreta (folha 'DADOS', colunas L e M)

  • Evita “esconder” despesas agrupando-as em coisas como “factura do cartão de crédito”. Pode ser mais rápido registar de forma consolidada, mas não obterás muita informação que te permita actuar. Até a “conta do supermercado” pode valer a pena esmiuçar, por exemplo separando alimentos de não alimentos, ou detalhando ainda mais. Se optares por agrupar despesas, fá-lo consciente de que ou a informação não é de facto relevante para este exercício ou te estás a tentar enganar

  • Na mesma filosofia, sugiro que coloques numa sub-categoria separada despesas que suspeitas que poderias reduzir ou eliminar, para melhor as vigiares. Por exemplo, no início eu agrupava supermercado e restaurantes em “Alimentação” e não sabia quanto vinha de cada fonte de despesa. Por isso decidi começar a separá-las e rapidamente concluí que andava a gastar demasiado em restaurantes

  • Uma categoria bastante interessante é a categoria “Trabalho”, onde podes incluir coisas como a roupa comprada exclusivamente para trabalhar, os custos de transportes associados ao trabalho, as refeições fora de casa que não farias se não fosses trabalhar, custos de saúde devido aos efeitos do trabalho, custos de férias mais elevados por teres de marcar com pouca antecedência e em época alta... Pode ser interessante calcular o verdadeiro salário líquido, depois de descontar tudo isto, e reavaliar a relação custo-benefício da tua actual opção.

2. Ao fim de um mês (ou ao fim de cada mês, por exemplo, se decidires manter o registo por bastante tempo) analisa as tuas despesas, aproveitando os relatórios na folha 'RELATORIOS'. Procura padrões que mereçam análise e talvez uma alteração no teu comportamento (recorda as dicas na Cobertura Financeira). Observa:

  • Quais são as categorias com mais despesas?

  • Quais as sub-categorias mais relevantes, dentro das categorias mais dispendiosas?

  • Que despesas contribuem para essas sub-categorias? Quão necessárias são? Quanto contribuem realmente para o teu bem-estar? Será que as podes reduzir, ou até eliminar? Haverá alternativas mais baratas para obter o mesmo benefício?

  • Na tabela detalhada ('DADOS'), que despesas, mesmo pequenas, são totalmente dispensáveis? Que tal, então, dispensá-las? Mesmo que seja, por exemplo, apenas um Euro por semana, imagina a poupança acumulada ao fim do ano! E da vida?

Desde que me reformei em Abril de 2008 registei quase todas as minhas despesas (talvez 99%), o que me permitiu identificar claras oportunidades de poupança. Tenho a certeza de que tu também descobrirás boas oportunidades, algumas até surpreendentes. As que representarem simplesmente "fugas" de dinheiro (dinheiro que sai do bolso sem que haja um benefício muito óbvio) serão, talvez, facilmente eliminadas. Outras saltarão à vista como boas candidatas, mas hesitarás em abdicar do benefício correspondente ou em disciplinar-te seriamente para as eliminar... as compras impulsivas... os jantares menos baratos com os amigos... os fins-de-semana fora... as provas desportivas... os DVDs... aquele vício que nunca mais largas e na verdade nem decidiste ainda se queres largar... A decisão é tua. O importante é que seja consciente e pondere bem os prós e os contras.

Espero que a Folha Forreta possa ser útil. Se decidires utilizá-la, fica à vontade para me solicitares consultoria financeira personalizada. Teria todo o gosto em bisbilhotar o teu registo (ou apenas os relatórios, de forma menos invasiva) e fazer sugestões de estratégia forreta.

Boas decisões! Viva o forretismo!


[Nota 1: Para os mais técnicos, “despesa” e “receita” aqui são sinónimos de “saída” (incluindo investimentos) e “entrada” de dinheiro. Por exemplo, se eu comprasse um carro a pronto, colocaria apenas uma despesa na data da aquisição. Contabilisticamente seria mais correcto colocar a depreciação mensal em cada mês de vida do carro (e em geral associar a cada mês as despesas que correspondem a um benefício nesse mês), mas provavelmente será complicação a mais.
Nota 2: Na verdade, a Folha foi feita em Calc, do OpenOffice.org – um "excel" grátis que recomendo vivamente. Espero que a compatibilidade seja total – por favor avisa-me se encontrares algum problema.
Nota 3: “Folha Forreta” é, está claro, uma hipálage – quem é Forreta não é a Folha, mas quem a utiliza.]

quarta-feira, 15 de abril de 2009

free range studios: criatividade com consciência

Já conheces os free range studios? Lançaram mais uma das suas brilhantes campanhas, desta vez contra os sacos de plástico:




Se não conheces outras iniciativas destes senhores, recomendo vivamente obras-primas como:

The Meatrix - a mentira que contamos a nós próprios sobre a origem da nossa comida. (E já agora as sequelas Meatrix 2 e Meatrix 2.5.)

The Story of Stuff - a história escondida dos nossos ciclos de produção e consumo (que eu já tinha publicitado na bulicena "Quem vais comer ao jantar?").

The Store Wars - sobre uma nova esperança: a rebelião orgânica.

domingo, 12 de abril de 2009

Pai Nosso 2.0

Suspeito que o "Pai Nosso" não é rigorosamente a oração que Jesus nos ensinou:

  • Segundo a oração, Deus é “Pai”. Entendo o significado positivo, próximo, criador, que nos ama... mas não deixa de ser uma perspectiva humanizadora e masculinizadora do transcendente (como habitual, o homem – macho mesmo, não humanidade – cria deus à sua imagem e semelhança)

  • Deus é “nosso”. Não posso deixar de me perguntar quem somos “nós”: não estaremos a excluir algo ou alguém da divina paternidade?

  • Deus está “no Céu”. Não sei bem onde isso fica, mas parece longe. Porque não aqui, em todo o lado?

  • A oração é vergonhosamente passiva, tudo na segunda ou terceira pessoa, um descarado peditório: "venha...", “seja feita...”, “dai-nos...”, “perdoai...”, “não nos deixeis...”, “livrai-nos...”. Humildade é uma qualidade importante, mas não nos faria mal um pouco de iniciativa e responsabilidade!

  • A única parte na primeira pessoa é no plural (óptimo para rezar em comunidade mas também para diluir a responsabilidade – o que é de todos não é de ninguém) e representa uma troca comercial: “perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”. Que lata pretender exigir reciprocidade a Deus, não?!

  • Em português, na versão comum da oração, Deus é tratado por "Vós", a pessoa mais distante e anacrónica da língua portuguesa. Com o devido respeito, que tal um pouco de intimidade? (há alguns anos adoptei o “tu” usado em espanhol e no evangelho de São Mateus)

Proponho renovar esta oração que já tem uns aninhos (quase 2.000) e:

  • Reconhecer Deus de forma mais católica, ou seja, universal

  • Aproximar Deus, tanto astrográfica como linguisticamente

  • Tornar a oração activa, responsabilizadora, um momento de conversão através de positivas profecias auto-realizadoras, através da decisão incondicional de nos reformarmos, de nos fazermos sempre melhores

Que tal algo como:

Deus de tudo, que estás em tudo,
eu te respeito, santifico e agradeço;
procuro a tua vontade e faço-a minha;
trabalho, incansável, para alimentar
corpo, mente, coração e espírito;
amo e respeito todos e tudo:
humanidade e natureza, amigos e inimigos;
vivo cada vez mais consciente e com mais atenção,
para não gerar infelicidade, minha ou alheia;
reparo prontamente as minhas faltas
e espalho amor e boas energias à minha volta;
Amen!

(GLP! Será que tenho coragem para rezar isto mesmo?!)


Se acreditarmos que pelo menos 20% dos cerca de 2 mil milhões de cristãos rezam o “Pai Nosso” semanalmente, são no mínimo 60 milhões de “Pai Nossos” rezados todos os dias – que potencial de transformação! Melhor do que propor uma nova fórmula, porque não renovar continuamente a oração? Para que, mais do que um mantra de meditação, cada “Pai Nosso” represente um exercício consciente para uma nova Páscoa: uma passagem sempre para uma vida melhor. E melhor e melhor. Caminhada infinita (com altos e baixo mas tendência positiva) para a inalcançável perfeição!


[Aí pela net, gostei bastante de como este “Pai Nosso” desenvolve a fórmula tradicional. Noutra onda, há mais de 20 anos que os Xutos poderosamente apresentam uma forma alternativa de oração, como mostra o vídeo abaixo. Imaginem uma actuação destas quando Bento XVI visitar Portugal! Algo a propor ao Departamento de Marketing da Igreja Católica.]



sábado, 4 de abril de 2009

Shivabalayogi

Deambulando pela Little India singapurense (na rua Syed Alwi, mesmo em frente ao famoso Mustafa Center), um cartaz chamou por mim: “FREE MEDITATION CLASS”. Apesar do meu forretismo, mais do que o “FREE” foi o “MEDITATION” que me chamou a atenção. Convite irrecusável: óptima oportunidade para me tentar redisciplinar nesta prática que me parece tão valiosa. E o cartaz ainda prometia comida vegetariana grátis depois da meditação!

Entrei no templo, de certa aparência hindu, onde o ar condicionado poderia estar mais fraco e meia dúzia de pessoas estavam já sentadas em posição de meio lótus, de olhos fechados, aparentemente concentradas. Nas paredes, coloridos cartazes de gurus indianos. Indicaram-me onde sentar e prontamente o Chandra veio orientar-me. Perguntou se era a primeira vez ali – “Sim” – e se já tinha meditado alguma vez – “Fiz um curso de meditação Vipassana”. “Então isto é parecido: vais fechar os olhos e concentrar-te no ponto entre os olhos [o terceiro olho], durante um bocado, até eu te dizer. Vais receber energia e bênçãos de Shivabalayogi” (o guru cuja foto se destacava numa espécie de altar ao fundo da sala, onde costumam estar as figuras divinas das religiões iconófilas). Enquanto me dizia isto, aplicou-me entre os olhos um giz cinzento claro (vibhuti – cinza benta, possivelmente bosta de vaca queimada) e, enquanto pressionava, baixou a cabeça na minha direcção para me transmitir “energia”. Não sei se senti algo especial nesse preciso momento, mas gostei das boas energias que a serenidade e o sorriso sincero do Chandra transmitiram.



foto: www.shiva.org



Durante uma hora tentei domar a mente indomável e concentrar-me no ponto sugerido. Mantive uma posição bastante estática, só mexendo a perna esquerda quando a circulação começou a falhar. O silêncio razoável na sala (apesar do ruído lá fora) e a sensação provocada pela cinza (não, não notei nenhum cheiro) ajudavam, mas a concentração não foi excelente. Fui despertado do meu estado ilumin... aaaam...devaneador, pelo “Oooommm” do Chandra. Ele estava surpreendido com o meu aparente sucesso na meditação e perguntou se praticava habitualmente. Expliquei que não era muito disciplinado e que não tinha estado assim tão concentrado na última hora. Ele motivou-me para a prática regular, de uma hora por dia, que me aproximaria do divino e traria graças, e deu-me um pedaço de vibhuti. Disse também que por vezes havia quem tivesse visões (darshan) de Shivabalayogi durante a meditação. Com o seu sorriso sereno e pleno de amor universal, explicou que a seguir iriam cantar (bhajans – cânticos espirituais) e que mais tarde serviriam comida, e convidou-me, sem qualquer insistência, nem o mais infinitésimo tom de chantagem, a ficar. Tive o reflexo de olhar para o relógio mas imediatamente concluí que não tinha planos alternativos e que algo me dizia que deveria estar aberto e aceitar o convite (talvez o facto de o guru ter nascido no mesmo dia que eu, exactamente 41 anos mais cedo, tenha algo a ver?). O Chandra pareceu surpreendido e muito feliz. Explicou que Shivabalayogi não fazia discursos, simplesmente incentivava a prática da meditação para seguir o caminho da verdade, e que não defendia nenhuma religião especificamente nem pedia que ninguém alterasse o seu caminho espiritual: hindus, cristãos, muçulmanos... Ecumenismo no seu melhor. Deduzindo as minhas referências, disse que poderiam cantar a Cristo em inglês.

Seguiu-se uma hora e meia de cânticos (suspeito que em telugu, língua do sul da Índia). Como nos deram fotocópias dos cânticos, as letras eram bastante repetitivas e as palavras bastante pronunciáveis, até dava para acompanhar facilmente. O Chandra de vez em quando vinha explicar alguma coisa: que os cânticos eram sobre o guru, que eram geradores de energia (não senti nada de especial), que no final o pessoal poderia ficar um pouco mais entusiasmado e parecer algo marado, mas que só significava mais energia na sala (não vi nada muito louco). Como prometido, pelo meio pediu para cantarem a Cristo em inglês (algo do tipo, “Please come, Lord”).

Eu tinha almoçado um pesado thali e tinha pensado não jantar, mas nessa altura estava a ficar com fome e a reconsiderar. Finalmente acabaram os cânticos: não estava a sentir a tal energia (mas também não sou o tipo mais sensível do mundo, como muitos leitores saberão) e sentia, mundanamente e sem vergonha, vontade de comer alguma coisa. Nem só de pão vive o homem, mas também!

Mas entre mim e a comida um preceito final: as pessoas colocaram-se em fila indiana (termo muito bem aplicado aqui, dado ser essa a etnia da maior parte dos presentes) e, um a um, foram “prestar respeito” ao guru. Parecia-me bem prestar respeito a um guru com uma mensagem tão incriticável de amor universal, mas sou bastante iconoclasta e dispensava o preceito em frente à fotografia. Convidado mas não pressionado, acabei por juntar-me ao fim da fila quando percebi que aquilo que me era indiferente era importante para o Chandra e colegas. Em frente à foto de Shivabalayogi desenhei três círculos com uma vela numa bandeja metálica e depositei uma flor num prato. Depois deram-me prashad (comida benta, parecia fruta cristalizada), que comi, e segui para a sala onde estava a ser servida comida mais substancial (talvez também prashad).

Foi provavelmente a melhor refeição dos últimos meses (peço desculpa a alguma cozinheira ofendida!). Comida indiana vegetariana, com especiarias mas muito pouco picante, permitindo saborear as nuances da incrível variedade de alimentos: arroz, massa, chapati, idli, dhal, vada, e várias outras coisas que não soube identificar, incluindo sobremesa e café com leite bem doce. Um tour completo pela cozinha do Sul da Índia. A única crítica é que me serviram demasiada comida (mas também era a única forma de ter a experiência gastronómica completa).

Estive um pouco na conversa com um jovem casal indiano, com quem pratiquei as minhas frases preferidas em hindi (“estou a aprender hindi” e “não compreendo“). O rapaz comentou que iam ali todos os sábados desde há dois meses e que durante a semana ele procurava meditar durante a deslocação para o trabalho, uns 40 minutos todas as manhãs. Explicaram-me que cada família trazia alguma coisa para o jantar, daí a enorme variedade, e aproveitei para agradecer os deliciosos pastéis de batata doce que a rapariga tinha contribuído.

Agradeci a hospitalidade às poucas pessoas que ainda estavam por ali (impressionando com o meu fluente hindi: “Danyavad!”) e despedi-me. O Chandra apertou longamente a minha mão, com o seu sorriso emissor de potentes radiações positivas, enquanto me convidava a aparecer mais vezes mas deixando-me totalmente à vontade: o importante era procurar meditar uma hora por dia, pois certamente obteria muito bons resultados.



foto: www.shivabalayogi.org



Pouco exigente comparado com os inacreditáveis 12 anos que Shivabalayogi passou nas suas tapas (nada a ver com as homónimas iguarias espanholas). Segundo parece, aos 14 anos Shivabalayogi experimentou o samadhi (iluminação) ao ser iniciado na meditação por um guru que lhe apareceu. Seguiram-se oito anos dedicando 23 horas diárias à meditação, e depois quatro anos com 12 horas diárias de meditação. Depois, Shivabalayogi começou a viajar, primeiro na Índia, depois no Sri Lanka, e mais tarde no Reino Unido, Itália e Estados Unidos. Consta que iniciou mais de 10 milhões de pessoas na prática da meditação. Abandonou o seu corpo físico em 1994, mas dizem que muitos meditadores continuam a sentir a sua presença.

Não notei a presença de Shivabalayogi, mas saí à movimentada rua e ao ruidoso mundo real a sentir-me leve (excepto no estômago!), em paz, com muito boas energias.


Para mais informações sobre Shivabalayogi:
www.shivabalayogi.org
www.shiva.org
Vídeo de 7'21" no Youtube: