domingo, 17 de fevereiro de 2008

Ténis novos

“Hello! Hello! Excuse me!”

Quando ele já estava ao meu lado e era impossível continuar a fingir-me surdo, viro a cara para encontrar um homem de baixa estatura com uma caixa de engraxar sapatos na mão.

Para variar, pergunta-me de onde sou. Respondo com a má vontade que vai crescendo proporcionalmente ao número de vezes que a pergunta se repete, já esperando que a conversa seja direccionada para a óbvia transacção comercial... Reparo, satisfeito, que estou de ténis, e portanto será impossível ele oferecer-se para me engraxar os sapatos.

A conversa desenvolve-se: há quanto tempo estou na Índia, quanto tempo vou ficar... “Vou ficar seis meses, trabalho em Gurgaon...”

Em que trabalho? Que pergunta complicada... “Negócios”, respondo. Que tipo de negócios? “Qualquer negócio” (perguntas complicadas, respostas complicadas…).

Ele fica meio intrigado, mas pouco impressionado: “Eu limpo sapatos. Sapatos pretos, sapatos castanhos, sapatos brancos – quaisquer sapatos.”

Trungas – chapadão nas fuças!! Acordo. Interesso-me por este homem baixinho que caminha ao meu lado falando com assertividade, nobreza, auto-estima, orgulho nele próprio e naquilo que faz na vida. Sinto-me a encolher até ficar mais baixo do que ele. Só então reparo como uns segundos antes eu estava a olhar para ele de cima para baixo, desvalorizando a pessoa e a profissão... Sou muito estúpido!

Trocamos boas energias e ele convida-me a sentar ali à frente para conversarmos. Aceito satisfeito, descontraído.

Pergunta se sei falar Hindi, como outros estrangeiros que ele conhece (a quem já limpou os sapatos) que estão na Índia há mais tempo. Respondo “main Hindi sikh raha hoon” [“estou a aprender Hindi”], mas sei muito pouco. Não há problema – o inglês dele é excelente.

Olha para os meus ténis e pergunta onde os comprei, se na Índia ou em Portugal. Foi em Portugal. Há quanto tempo? Há mais de um ano. “São sapatos muito bons! Se fossem indianos já estariam destruídos”, comenta.

Tinha pensado que estava a salvo da transacção comercial, mas ele decide mostrar que também sabe limpar ténis. Saca de uma escova de dentes, molha-a num líquido branco, e começa a esfregar a parte da frente do meu ténis direito dizendo que não me vai cobrar nada. Insisto que não quero que limpe os sapatos – não é uma questão de poupar umas rupias (que sei que ele vai acabar por levar), mas sim de me ser indiferente o aspecto dos meus ténis e saber que os vou sujar de novo rapidamente. Mas, claro, ele não liga e continua a sua demonstração grátis.

Impressionante: a ponta do meu ténis ficou realmente brilhante. Enquanto ele explica que são “só 20 rupias” o meu cérebro roda umas engrenagens até concluir que o mundo ficará melhor se encomendar o serviço: eu ficarei indiferente ao aspecto dos tênis e às 20 rupias, ele ficará orgulhoso por mais um serviço bem feito a mais um estrangeiro, e levará mais 20 rupias para casa.

Tiro os sapatos para facilitar o trabalho. Durante vários minutos ele esfrega-os meticulosamente de uma ponta à outra com a escova de dentes molhada na tal fórmula branca secreta e milagrosa (provavelmente detergente: os ténis ficaram a cheirar a roupa lavada).

Resultado final: reluzentes, como novos! Mesmo sabendo que o brilho não durará muito, é impossível ficar indiferente. Sem dúvida, o homem domina o negócio, tanto a área comercial como a técnica. E eu é que trabalho em “qualquer negócio”!





Pago as merecidíssimas 20 rupias e só então lhe pergunto o nome: Deram (ou talvez Dharam). Apertamos a mão e agradeço, não tanto o excelente serviço, mas muito mais a conversa, as boas energias e a lição do dia. Despeço-me desejando boa sorte e seguimos os nossos caminhos, eu provavelmente mais enriquecido do que ele.

sábado, 16 de fevereiro de 2008

A bitola

Quem faz mais do que eu faz de mais, quem faz menos faz de menos

  • Quem faz mais desporto do que eu é viciado, fanático, qualquer dia sofre morte súbita; quem faz menos desporto do que eu é sedentário, preguiçoso, atleta de sofá

  • Quem é mais gordo do que eu é obeso, balofo, vai morrer cedo de ataque cardíaco; quem é mais magro do que eu é fraco, esquelético, doente

  • Quem come mais é guloso, come sem necessidade, só come porcarias; quem come menos tem a mania das dietas, passa fome, é anoréctico

  • Quem bebe mais é um bêbado, alcoólico, descontrolado; quem bebe menos é um menino copinho de leite, abstémio, não sabe apreciar as coisas boas da vida

  • Quem dorme mais é mandrião, não tem nada para fazer, não aproveita o tempo; quem dorme menos não sabe descansar, é frenético, nervoso

  • Quem vai mais ao médico é hipocondríaco, vive atormentado pelas doenças; quem vai menos é um irresponsável, não sabe cuidar de si próprio

  • Quem se lava mais tem a mania da higiene, precisa de tratamento psicológico; quem se lava menos é sujo, porco, imundo

  • Quem se arranja mais é vaidoso, presumido, metrossexual; quem se arranja menos é maltrapilho, esfarrapado, não tem apresentação

  • Quem mostra mais o corpo é indecente, depravado, sem-vergonha; quem mostra menos é conservador, antiquado, aborrecido

  • Quem tem a casa mais limpa e arrumada é obcecado pela limpeza e pela ordem, vive escravizado pelas tarefas domésticas; quem tem menos é desleixado, vive numa pocilga

  • Quem chega sempre antes de mim é rígido, intransigente, segue disciplina militar; quem chega depois é um atrasado, desrespeitador, não tem consideração por quem espera

  • Quem trabalha mais é trabalhólico, viciado no trabalho, não tem vida própria; quem trabalha menos é preguiçoso, não faz nada, é um inútil

  • Quem tem mais amigos não é íntimo de ninguém, só tem relações superficiais; quem tem menos é solitário, eremita, vive isolado do mundo

  • Quem sai mais com os amigos é boémio, vadio, hedonista; quem sai menos é um menino da mamã, hiper-controlado, incompetente social

  • Quem viaja mais é leviano, não aproveita os lugares que visita, não aprecia realmente as coisas; quem viaja menos tem horizontes curtos, vive numa aldeia, não conhece o mundo

  • Quem gasta mais é um capitalista esbanjador, perdulário, consumista; quem gasta menos é forreta, avarento, somítico, Tio Patinhas

  • Quem paga mais impostos é careta, tanso, ingénuo; quem paga menos é espertalhão, malandro, vigarista

  • Quem conduz mais rápido é um inconsciente, louco, assassino; quem conduz mais devagar é domingueiro, não sabe guiar, tirou a carta na farinha amparo

  • Quem muda de emprego mais vezes é inconstante, não sabe o que quer da vida, não se consegue comprometer; quem muda menos é acomodado, conformado, não corre atrás das oportunidades

  • Quem sabe mais é um marrão, rato-de-biblioteca, nunca se diverte; quem sabe menos é um cábula, burro, inculto, ignorante, analfabeto

  • Quem tem mais autoconfiança é convencido, arrogante, tem a mania de que sabe tudo; quem tem menos é inseguro, um banana, incapaz

  • Quem fala mais é tagarela, chato, inconsequente; quem fala menos é introvertido, tímido, medroso

  • Quem fala mais dos outros é um indiscreto, bisbilhoteiro, intriguista; quem fala menos é desinteressado, misantropo, não quer saber de ninguém

  • Quem é mais velho é cota, velhadas, acabado, está de pés para a cova; quem é mais novo é uma criança, infantil, ainda tem muito a aprender

  • Quem é mais carinhoso é carente, pegajoso, maricas; quem é menos é distante, indiferente, insensível


Quem é mais do que eu é de mais, quem é menos é de menos. Quem está bem sou eu, que faço tudo na medida certa!

sábado, 2 de fevereiro de 2008

Homem invisível

Após o almoço (um thali e um lassi doce, para variar) voltei para casa caminhando pela berma da estrada (pelo lado direito, como manda o bom senso num país que conduz – aproximadamente – à esquerda).

À minha direita o terreno afunda-se um pouco e lá está o omnipresente monte de lixo. E navegando no lixo, claro, duas vacas tentam encontrar alimento. Junto às vacas, três ou quatro porcos na mesma empreitada. Até aí nada de novo... Só então reparo no homem! Junto às duas vacas, três ou quatro porcos, e mais dois cães que entretanto detectei, um homem vasculha também. Vacas, porcos, cães e homem competem pelos restos que algumas pessoas – para mim javardas (sem ofensa aos três ou quatro porcos), para o homem talvez generosas – ali deitaram.

No chão, junto à estrada, está a bicicleta enferrujada em que ele se transporta, já carregada com dois sacos de "objectos de valor" que tentará trocar por umas rupias. Passo a dois metros, mas o homem nem dá por mim. Estamos em dimensões diferentes: eu não existo para ele... será que ele existe para mim?

Continuo a andar, pensando que cada vez me impressiono menos com estas visões, infelizmente tão frequentes. Tão frequentes que, nesse instante, vejo dois miúdos de cócoras entre os arbustos, num acto tão natural como descarregar os intestinos. Uma miúda de talvez uns oito anos e um miúdo um pouco mais velho. Também eles noutra dimensão.

Dois minutos depois regresso à matrix ao cruzar o portão do meu condomínio.




Em Ahmedabad, outra dimensão, à beira do rio Sbarmati





E, ali a 200 metros, o hotel Le Méridien