terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Os intocáveis

Um dos mais fascinantes fenómenos para quem visita a Índia é a existência das famosas castas, especialmente as castas baixas. No fundo da escala social estão os dalits, ou “intocáveis” (não por serem super-poderosos e ninguém, querendo, os conseguir tocar, mas, pelo contrário, por ninguém os querer tocar, sob pena de se tornar também “impuro”). São animais da espécie humana, com cabeça, tronco e membros, cérebro, coração, boca, olhos, nariz, etc., tal como a esmagadora maioria dos leitores das bulicenas. O que os distingue é que em algum momento da história foram destinados a funções na sociedade que outros seres talvez menos humanos não gostavam tanto de fazer: recolher lixo, limpar o chão, limpar casas-de-banho, etc. Os filhos, netos e bisnetos mantiveram ocupações semelhantes, os bisnetos dos bisnetos também, e por aí fora até ao actual século XXI. Ao mesmo tempo que a Índia se destaca como prestadora global de serviços em áreas tecnológicas ultra-avançadas, é comum encontrar “homens invisíveis”.

A “intocabilidade” é actualmente inconstitucional na Índia. Mas claro que isso não significa que não exista – crenças e valores não mudam por decreto. É difícil mudar conceitos tão enraizados na cultura que nem sequer são identificados, muito menos questionados – estão lá e pronto. Para ajudar a identificar o que deveria mudar, a lei indiana tem criado condições (obviamente polémicas) para discriminação positiva de dalits, por exemplo reservando quotas de acesso à faculdade ou à função pública.

Não posso dizer que na minha limitada experiência de Índia tenha captado profundamente as definições, mecanismos e consequências práticas do complexo sistema de castas – antes pelo contrário. Não sei a que castas pertenciam as pessoas com quem me relacionava no dia-a-dia nem detectei comportamentos que as denunciassem claramente (mas eu sou um tipo bastante distraído).

Os meses na Índia despoletaram uma introspecção e uma reflexão sobre a “minha” cultura e deixaram-me mais atento às minhas (e nossas) “programações”. Será o sistema de castas algo assim tão estranho? Será que não partilhamos conceitos semelhantes em todas ou quase todas as sociedades? Quando não reparo em quem recolhe o lixo urbano, quem varre as ruas, quem mantém a casa-de-banho do centro comercial imaculadamente brilhante... não estou também a classificar essas pessoas de certa forma como “intocáveis”? Sim, talvez não tenha (ou talvez tenha?) problemas em tocar-lhes fisicamente, apertar a mão, partilhar espaço num transporte público, até trocar umas palavras e agradecer o serviço... Mas até que ponto faço amizade com essas pessoas (será pura coincidência que não tenha nenhum amigo que se dedique a tais actividades?) ou consideraria uma delas para fazer parte da minha família? Até que ponto respeito e valorizo realmente, sem pena nem paternalismo, o contributo destas pessoas para o funcionamento da sociedade? Até que ponto os recompenso justamente pelo seu contributo? Lhes dou oportunidades para decidirem quem querem ser e o que querem fazer?

Se nos choca a existência de castas na Índia talvez nos devesse chocar também a existência de castas na nossa sociedade (mesmo que funcionem de forma diferente). Ou talvez não, porque é a nossa sociedade e na nossa sociedade as coisas são como têm de ser? São sempre os outros que estão mal. A bitola certa é a minha. Tudo o que me é próximo e semelhante, partilha as minhas características e preferências, é melhor, superior. Tudo o que é longínquo e diferente é pior, inferior.

Sistemas de castas, explícitos ou implícitos, servem para perpetuar o domínio de uns sobre outros. Se até quem é classificado numa casta “inferior” acredita inconscientemente no sistema, forma-se uma poderosa profecia auto-realizadora que assegura a manutenção do status quo. E estas programações estão tão enraizadas que por vezes estão reflectidas nas nossas leis, preceitos morais e, nos casos mais extremos, chegam até à boca de deus!!

No livro de Levítico, deus regulamenta assim a escravatura: “O escravo ou a escrava que pretendais adquirir devem sair dos povos estrangeiros que vos rodeiam; poder-lhes-eis comprar escravos e escravas. Podê-los-eis, também, comprar entre os filhos dos estrangeiros que residam no meio de vós, entre as suas famílias que vivem convosco e entre os filhos que lhes nascerem no vosso país, e serão propriedade vossa. Podeis deixá-los em herança aos vossos filhos, a fim de que os possuam depois de vós, tratando-os perpetuamente como escravos; quanto aos vossos irmãos, os filhos de Israel, que ninguém domine o seu irmão com dureza.” [Lev 25.44-46]

Com um deus assim, não admira que o estado moderno de Israel funcione como se tem visto. Mas não vamos cair de novo no erro de achar que é só o deus dos outros que está mal: como é o meu? Que histórias me conta, que mandamentos prescreve? Ajuda a melhorar o mundo, ou só a melhorar a esfera centrada no meu umbigo? Quem é intocável para mim?