domingo, 20 de janeiro de 2008

Maratona de Mumbai

Missão cumprida! Completei a maratona de Mumbai no tempo planeado: 3 horas e 20 minutos! Obrigado a todos pelo apoio virtual e/ou telepático!





Alguns leitores poderão perguntar-se (ou, pior ainda, perguntar-me): mas porque raios alguém corre uma maratona??! Boa pergunta... Nunca me coloquei essa pergunta, portanto não sinto necessidade de uma resposta. Corro porque sim e pronto. Pode ser que a tente responder um dia. Entretanto, fica aqui o relato desta loucura, sem perguntas, e ainda menos respostas, existenciais.

Fiquei em 63° entre 432 participantes. O vencedor, John Kelai (do Quénia, surpreendentemente), tinha vencido também em Singapura’2003, a última maratona em que eu tinha participado. Mas parece que ele tem treinado mais: baixou o tempo em 7 minutos, enquanto eu aumentei 5 minutos.

Podem ver os resultados completos em http://www.sport-timing.at/results/results_overview.php?Event_ID=1040.

Para quem gosta de números e estatísticas, na tabela abaixo podem ver os meus tempos de passagem. As três primeiras colunas (“planeado”) eram a minha previsão de hora de passagem em cada km, que passei a uns colegas que talvez aparecessem por lá. A coluna “real” tem os tempos executados – podem confirmar que foram todos dentro da previsão, inicialmente muito perto da média, e depois convergindo para o tempo máximo.




Tempos de passagem estimados vs. reais



E este gráfico mostra o meu ritmo de prova em cada fase: no eixo vertical está o tempo médio por km e no eixo horizontal a distância percorrida (por exemplo, nos primeiros 5 km corri a uma média de pouco menos de 4 min e 40 segundos por quilómetro). A barra cinzenta por trás do gráfico indica o meu objectivo: entre 4’30” e 4’45” por quilómetro. Podem ver que na primeira metade fui acelerando muito ligeiramente e que a partir do km 30 deixei de conseguir manter o ritmo abaixo dos 4’45”. Nos kms 35 e 36 nota-se bem o efeito da única subida do percurso (que maldade colocá-la ali!), e no km 37 a subsequente descida. E, finalmente, os penosos 5 kms finais, planos mas muito duros.


Tempos médios por km




Indianos, corridas e pernas

Constatei duas coisas importantes nesta prova:
1) Existem indianos que correm (mas não muitos)
2) Existem indianos que mostram as pernas (mas não muitos)

Durante os três meses que antecederam a maratona devo ter visto umas três pessoas a treinar corrida (vi algumas outras pessoas a correr por motivos diversos, como apanhar o comboio, mas não por desporto). É comum ver gente a caminhar como exercício físico, mas não a correr. Portanto eu estava um pouco céptico sobre os 30 mil participantes anunciados para o evento – não poderiam ser todos estrangeiros!

Rapidamente percebi que os 30 mil se dividiam em algo como 27 mil na mini-maratona (6 km), 2 mil na meia-maratona e 500 na maratona... Bastante mais provável.

E pude constatar que, em qualquer uma das três provas, muita gente a fez caminhando e não a correr! 6 km a andar ainda vá, deve dar 1 hora e meia ou assim. Mas 21km? E 42km??

Mas o que é facto é que, entre muitos caminhantes, vi também muitos indianos a correr. Na maratona havia bastantes estrangeiros, mas a maioria dos atletas era local. Afinal há (alguns) indianos que correm! E o vencedor da meia-maratona foi um indiano: há alguns indianos que correm bem!

Quando corro perto de casa, os homens por quem passo ficam descaradamente a olhar para as minhas pernas (mais descaradamente do que olham para as mulheres). Eu sou bastante distraído, portanto nunca teria reparado se não fosse mesmo tão óbvio. Possíveis explicações:


  1. Os meus calções (e não as pernas) chamam a atenção. Esta seria a explicação mais plausível se o fenómeno se verificasse apenas quando eu uso os meus calções vermelhos gastos (algumas pessoas acham que são cor-de-rosa), os mesmos que usei nesta maratona, e na maratona de Singapura há 4 anos, e em tantas outras corridas. Eram os calções da selecção de pentatlo moderno talvez em 1998?, portanto ainda só têm uns 10 anos (não, apesar do que alguns leitores poderão estar a pensar, não estou a precisar de uns calções novos). Não só estão gastos na cor como também no tecido, mas continuam a cumprir a sua função de tapar as partes privadas para não gerar pensamentos pecaminosos nem matar nenhuma velhinha de ataque cardíaco, enquanto me dão liberdade de movimentos para correr sem atritos e sem calor. Já verifiquei cientificamente que o fenómeno é independente dos calções utilizados, portanto não é esta a explicação.


  2. Os indianos nunca mostram as pernas, e portanto é interessante, exótico, talvez chocante, ver alguém que as mostra. Esta é a explicação mais provável, visto que aqui perto de casa vejo bastante gente nos seus exercícios matinais (caminhada), mas toda a gente usa calças (penso que já vi um ou dois homens de calções).


  3. As pernas dos indianos são diferentes: menos pêlos? mais escuras? Obviamente, nunca reparei, primeiro porque costumam andar tapadas, e segundo porque ainda não estou assim tão indianizado a ponto de ficar a olhar para as pernas do pessoal.


  4. Os indianos gostam de pernas de homens. Esta explicação é também possível. Afinal, eles têm o hábito de passear com outros indianos (também homens) segurando ternamente a mão um do outro, portanto não seria de admirar que gostassem de apreciar as pernas de outros homens.



Então e as mulheres não olham para as minhas pernas? É verdade, tenho de confessar que nunca flagrei nenhuma indiana a olhar para as minhas pernas. Podem imaginar em que estado está a minha auto-estima... Para não me deprimir muito, posso encontrar várias explicações:
a) As mulheres olham mas são discretas
b) Na verdade não encontro tantas mulheres assim quando corro
c) Corro demasiado rápido para elas poderem apreciar

Antes do arranque da maratona, vi passar atletas da meia-maratona (começou 1 hora antes) e quase toda a gente estava de calças. Que coisa desconfortável, correr 21 km de calças... Fiquei a pensar que nem em provas os indianos mostrariam as pernas... Fiquei mais descansado quando comecei a ver os maratonistas: finalmente, a maioria estava de calções! Afinal há (alguns) indianos que mostram as pernas!


A caminho da partida

São 7 da matina, o sol começa a regressar da sua volta ao mundo nocturna. Cá em baixo, nesta cidade que hoje é o centro do meu universo, procuro o caminho para a partida da maratona de Mumbai. Passo por vários corpos deitados no chão, totalmente envoltos em cobertores. Se algum corpo tiver sido abandonado pela respectiva alma vai demorar a ser descoberto, já que não é raro ver corpos por ali deitados ao longo do dia. Mas ainda é hora de dormir para muita gente, com casa e sem casa. E, apesar da música de batida poderosa que já vem da zona da corrida e do movimento de atletas e público, estes sem-abrigo dormem como se fosse um dia normal, se é que eles têm algum dia que se possa chamar normal.

Finalmente entendo por onde tenho de ir para me juntar aos restantes maratonistas. Quando dou por mim, estou a caminhar onde os atletas de elite fazem o seu aquecimento para a maratona: só vejo atletas de pele mais escura que o habitual mesmo na Índia, todos com números de prova de dois dígitos. Penso “e se eu ficasse aqui?” (sendo estrangeiro, apesar de cara-pálida, até poderia funcionar), mas continuo o meu caminho em direcção à partida do “povão”.

Junto-me aos restantes maratonistas não de elite e começo a olhar em volta. O número de atletas é reduzido, semelhante ao da minha primeira maratona, Lisboa em 2000. Poucos atletas significa que vou correr sozinho grande parte do percurso.

Estou certamente numa maratona diferente: alguns atletas de mochila, outros de calças, vários atletas descalços, outros com calçado totalmente inadequado para correr 42 km (ténis tipo all star, por exemplo). Que coragem! Ou loucura?

Pouca gente leva mantimentos para a prova. Fico a pensar quantos chegarão ao fim.


Partida

A partida foi dada quando o povão estava bloqueado por um grupo de soldados a uns 200 metros da largada. Nem sequer ouvimos o tiro de partida. Só percebemos que a maratona tinha começado quando os soldados saíram da nossa frente e nos deixaram correr. Então vimos que já não havia ninguém na largada. Foi nesse momento que desisti do objectivo de vencer a prova. Demorei cerca de 2 minutos desde o tiro de partida até passar na largada, por isso o meu tempo oficial é na verdade 3h22min, e o tempo “líquido” são as tais 3h20min (sim, concordo que os 2 minutos contariam se tivesse batido o recorde do mundo... mas não era essa a minha corrida, por isso deixem-me registar as 3h20min, vá lá).

Comecei a corrida calmamente, entrando logo no ritmo certo, por volta de 4’40” por quilómetro. Sabia que para fazer 3h20min (média de 4’45”/km) teria de correr ligeiramente mais rápido nos primeiros 30 kms, já que o “muro” dos kms finais é muito poderoso e me obrigaria a abrandar. Mas também sabia que não poderia ir mais rápido do que uns 4’30”/km, pois não estava treinado para essas velocidades.

O que é que alguém pensa quando começa uma maratona? Posso pensar muita coisa, mas algo que não me passa pela cabeça é que vou correr 42 km. Começo a maratona sabendo que vou passar bastante tempo a correr, mas não penso na brutalidade do esforço a completar. O importante é saber que estou preparado para completar a prova. Essa confiança vem dos meses anteriores de preparação disciplinada. Sei que treinei menos que para maratonas anteriores, e que estou em pior forma, mas por isso mesmo o meu objectivo é menos ambicioso.

Desde o início fui ultrapassando pessoal que tinha começado rápido demais e que ia abrandando. Na verdade, alguns nem sequer começaram rápido demais: havia pessoal a começar a maratona a andar! Imagino que pretendiam completar os 42 km sem correr... Estimei logo umas 8 horas na melhor das hipóteses. Os indianos gostam realmente muito de caminhar. Também na meia-maratona, que tinha partido 1 hora antes da maratona e que partilhava os primeiros 11 kms, havia centenas de pessoas a andar, com ar de quem não tinha corrido um único metro!

Logo no segundo quilómetro passa por mim um rapaz a sprintar loucamente, a ritmo que só dá para aguentar uns 200 metros. Pára pouco depois e continua a andar... Um minuto depois, passa por mim de novo em alta velocidade. “Louco... será que pretende fazer os 42 km assim??” Claro que nunca mais o vi.

Pouco depois do km 3, quando os atletas mais rápidos já passavam no outro sentido da marginal reparo num rapaz descalço a correr uns 30”/km mais rápido que eu, com todo o ar de quem vai aguentar o ritmo até ao fim. Espero que os pés tenham aguentado!

Nessa altura começamos a correr junto ao mar, à esquerda. Reparo que nos quilómetros seguintes a estrada continua na sombra. Óptimo, o sol vai demorar a aparecer e a temperatura vai continuar moderada. Tinha pensado que seria uma prova difícil com muito calor e humidade, mas nem está tão quente assim.

Por volta do km 7 reparo que outro atleta corre ao meu lado. Ele acelera um pouco e faz-me sinal para o acompanhar. Penso “vai lá tu à tua velocidade que eu estou muito bem na minha”. Ele acaba por resignar-se e fica ao meu lado novamente. Pergunta-me “what is your time?”. Eu “3h10min to 3h20min”. “Ah... that’s too fast”, responde. E eu, pensando que estávamos no ritmo certo para o meu tempo, pergunto “what’s your time?”. Ele responde “4h”. Quatro horas??! “You’re going too fast”, digo-lhe, “you should go 30” to 1’ slower per km!” Ele responde que já tentou ir mais devagar noutras provas mas que não resulta, então que prefere dar o máximo que conseguir até à meia volta (que seria no km 24, três kms depois do meio). Pensei que ele estava a precisar de um treinador mas não me voluntariei para o ajudar naquele momento... Fiquei feliz por ele quando uns dois ou três kms depois ficou para trás. Espero que tenha abrandado radicalmente.


Mantimentos

A partir do km 12, quando o pessoal da meia-maratona deixou de seguir no mesmo percurso, fiquei bastante sozinho. Até ao km 30 fui passando e sendo ultrapassado por um atleta indiano com ritmo parecido, mas ele acabou por abrandar mais nos derradeiros kms e terminou uns minutos depois de mim.

No km 14 (uma hora e pouco de prova) tomei o primeiro PowerGel. É basicamente um gel de açúcar (composto de água, maltodextrina, frutose, minerais e vitaminas) que ajuda a repor rapidamente alguma energia durante o exercício. Uma embalagem contém 108 kcal, uma pequena fracção do consumo energético de uma maratona, que deve ser algo próximo das 3000 kcal. O importante é ter energia para o cérebro funcionar. Na minha primeira maratona eu não sabia o que era isso do “muro” e aprendi da pior forma. Agora já detecto falta de energia mais facilmente – o primeiro sintoma é uma sensação de sono...




Primeiro PowerGel, km 14



Logo nos primeiros kms tinha reparado na boa qualidade do apoio aos atletas: água a cada 1 ou 2 kms, e alguns postos médicos mais espaçados. Peguei sempre numa garrafa de água desde a primeira oportunidade, inicialmente para despejar por cima da cabeça e aliviar o calor. Nos primeiros 15 kms ainda me esforcei por deitar as garrafas vazias em caixotes de lixo, mas a escassez de caixotes de lixo e o cansaço (a falta de açúcar começou a tornar difícil acertar no “cesto”) fez-me desistir. Passei a tentar pelo menos deitá-las para o chão perto de um dos assistentes da prova. Havia bastante gente a dar apoio, inclusive na limpeza, e estavam a fazer um muito bom serviço de deixar a rua limpa. Aliás, notei em geral que Mumbai estava bastante limpa – não sei se propositadamente para a maratona ou porque a campanha de civismo e limpeza da cidade (com cartazes por todo o lado) está a surtir efeito.

Depois do km 12 começaram a oferecer também uma bebida isotónica em alguns pontos de apoio, mas pareceu-me uma bebida pouco energética. Se eu não tivesse trazido os meus próprios mantimentos (quatro saquinhos de PowerGel) com certeza teria tido problemas em manter níveis de energia minimamente saudáveis até ao fim.


Paragem nas boxes

Antes da partida já sentia vontade de despejar uns líquidos... mas a única casa-de-banho que vi tinha uma fila razoável, e tenho reparado que as filas nas casas-de-banho indianas não avançam muito rapidamente (suspeito que isto de não usar papel higiénico não ajuda na velocidade). Decidi que provavelmente teria de fazer uma paragem nas boxes em algum momento da prova.

No km 10 tinha passado por uma casa-de-banho, mas também aí a fila era enorme porque o percurso ainda era partilhado com a meia-maratona. Tinha esperança de encontrar casas-de-banho na passagem à meia-maratona, mas nada. Resignei-me e comecei a pensar que teria de encontrar um lugar sossegado, descampado, longe de público, para aliviar a bexiga. Já bastava a dor normal de uma maratona, não precisava de uma sensação desagradável extra. O problema era que havia pessoas por todo o lado!

O povo saiu à rua para ver, aplaudir e incentivar os loucos que se aventuraram a correr os 42 km. Havia gente em quase cada metro de todos os 42.195 (na maratona de Lisboa só me lembro da minha família, o pessoal inebriado a sair da Kapital às nove da manhã, e poucas pessoas mais...). Infelizmente não contei com torcida de pessoal conhecido, mas a falta de açúcar no corpo em alguns momentos fez-me ouvir “Bora lá!!” e algum outro incentivo totalmente inverosímil.

Finalmente, por volta do km 23, pouco antes de dar meia-volta e começar o regresso em direcção à meta, vejo a minha ultima hipótese: uma marginal junto ao mar, tipo ciclovia Cascais-Guincho, com muito pouco público! Começo a reparar que quase não há público mas que há um polícia ou segurança a cada 50 ou 100 metros... Teve de ser ali: a uns 20 metros de um polícia, encosto à berma, junto a uma placa de um patrocinador da maratona para ficar mais discreto, e despejo os líquidos inúteis (praticamente só água, portanto não contribuí assim tanto para sujar a cidade). Gastei ali uns 20 segundos, mas foram muito bem investidos. Tinha de me começar a preparar para outras dores, e por isso tomei mais um PowerGel pouco depois do km 24.




Retorno, km 23




O muro

Até ao km 30 a corrida fez-se razoavelmente bem, e os meus tempos médios mostram que mantive um ritmo estável, até com ligeira aceleração, dentro dos meus objectivos. No km 33 voltei a sentir “sono” (ou seja, falta de gasolina) e decidi tomar o terceiro PowerGel. O ritmo estava a piorar, agora perto dos 4’50” por km e sabia que estava prestes a ter de enfrentar a única subida da prova (uma colina que já tinha subido e descido no sentido inverso, por volta do km 10).

O cérebro ainda permitia fazer alguns cálculos e pensei que mesmo que o ritmo piorasse para 5 minutos por km ainda conseguiria completar a prova em cerca de 3h18min – não seria difícil cumprir o meu objectivo!

A subida no km 35 foi o começo do fim da prova. Senti o ritmo a baixar bastante e o relógio confirmou: 5’18”. Foi o quilómetro mais lento de toda a maratona. Pensei que a descida subsequente me permitiria recuperar alguns segundos, mas as pernas começaram a ameaçar fazer greve e não fui assim tão rápido: o km 37 saiu em 4’45”. Pela primeira vez numa maratona senti que talvez fosse sofrer cãibras, como já vi tantos maratonistas sofrerem nos kms finais, mas felizmente não chegou a acontecer.

Cá está o muro: as minhas reservas de glicogénio estão em baixo, as pernas mudaram o combustível para gordura... Sinto-me meio apagado. Decido tomar o último PowerGel, para ajudar a manter-me minimamente lúcido nos 5 kms finais.

Nessa altura o percurso é plano e volto à estrada marginal, com o mar agora do meu lado direito. Tento focar os olhos (tarefa difícil devido à hipoglicemia) no percurso lá ao fundo onde tenho de virar à esquerda a caminho da meta. Parece muito mais longo do que 2 horas e meia antes! Quem é que colocou aqui estes kms a mais??

E está bem quente agora: o sol já vai alto e não resta nem um centímetro quadrado de sombra na estrada.

Também não restam muitos atletas. Estranho que ninguém me ultrapasse, agora que vou tão lento. Passo por um que teve de abrandar mais. Ele tenta acompanhar-me por um quilómetro mas acaba por desistir e andar. Ainda retoma a corrida e acelera para alcançar-me (“como é que este tipo ainda tem força para correr tão rápido?”), mas rapidamente desiste.

Talvez culpa em parte da hipoglicemia, mas tenho a sensação de que o público omnipresente desapareceu. Logo nestes kms pesados onde umas energias externas dariam tanto jeito!

Volto a fazer os meus cálculos mentais e concluo que terminarei a prova antes das 3h20min. Ok, não é tão mau assim, vamos lá.

Lembro-me do soldado de Maratona: porque é que ele tinha de correr 42 km?? Se ele tivesse corrido só 40 km talvez não tivesse morrido, e eu estaria a ver a meta neste momento! Mas se ele não tivesse morrido provavelmente ninguém teria inventado esta corrida...

Penso como seria bom descansar as pernas. Mas sei que andar não é uma opção, porque não me imagino a conseguir voltar a correr se parar neste momento. E então demorarei ainda mais a chegar à meta.

Claro que desistir também não é uma opção. Porquê? Porque não. Mesmo que me restasse algum juízo (que nesta altura já não resta), como é que poderia desistir a 3 kms do fim? Não é altura de responder a perguntas difíceis. É altura de me manter acordado, pernas a funcionar, focado na meta que há-de aparecer. Penso no momento de cruzar a meta e como será bom poder descansar as pernas. E comer alguma coisa!

Realmente a maratona é um desafio totalmente diferente de uma meia-maratona. Não é duas vezes mais, nem sequer 10 vezes. É muito mais. E eu ainda quero baixar das 3 horas numa maratona... Isso significa correr cada km em menos 30 segundos do que nesta maratona... tenho muito que treinar!

Passo por baixo de um viaduto onde lentamente avança uma multidão. Algumas pessoas carregam cartazes, mas não me peçam que os leia neste estado. Parece uma manifestação, mas ainda estou sóbrio o suficiente para perceber que é o pessoal que está a “correr” a mini-maratona.

Viro à esquerda junto à pizzaria onde jantei na véspera para me carregar de hidratos de carbono. Sei que devem faltar menos de 2 kms. Tento acelerar, mas as pernas já não obedecem. Têm vontade própria, mas felizmente decidiram ir até ao fim da maratona e não fazer greve antecipada.

Finalmente sou ultrapassado: passa um “europeu” (belga, segundo a lista de resultados), em ritmo ligeiramente mais rápido, com ar de pouco sofrimento. Tento acompanhá-lo mas é impossível. As pernas é que mandam.

A meta nunca mais chega, e há algum tempo que não vejo nenhuma placa a marcar os kms. Mas devo estar quase a chegar ao fim! Vejo uma placa meio escondida. Tem um zero à direita. Primeiro assusto-me, pensando que ainda é só o km 40. O cérebro demora dois segundos a lembrar que já passei pela placa do km 40. Penso então que deve ser uma placa de “faltam 100 metros” ou algo assim! Demasiado optimista: faltam 500 metros.

De novo tento acelerar, porque sei que começo a arriscar não cumprir o objectivo das 3h20min, mas de novo as pernas ignoram os meus pedidos.

Finalmente vejo a meta!! É já ali! Mas, antes, um último obstáculo a superar: um monte de gente atravessa o percurso de um lado para o outro. Decido ir pela esquerda, onde parece haver mais espaço, mas verifico que ali é a chegada da meia-maratona. Ainda consigo corrigir e passar para a direita, para cruzar a meta correcta. Um dos fiscais de prova olha para mim surpreendido porque não me tinha visto aproximar. Só faltava não registarem a minha chegada, depois de 3 horas, 20 minutos e 34 segundos de prova!

Passo a meta e paro o cronómetro. Já nem tenho forças para um gesto de vitória. Mas estou feliz. Missão cumprida.







Fotos da prova disponíveis em http://www.marathon-photos.com/marathon.html?job=Sports%2FCPUK%2F2008%20Sports%2FMumbai%20Marathon;match=1213

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Apetite indiano

Os indianos (pelo menos os meus colegas) adoram comer! É impressionante. Aqui o custo de não almoçar é muito maior do que no Brasil ou em Portugal. Em dias de prazos mais apertados no trabalho não tenho problemas em não almoçar (ups, a minha mãe não leu isto!), mas isso aqui vale logo uma greve geral de consultores contra a escravatura.

Todos os dias há alguma comida especial a meio do dia: um bolo de aniversário, umas chamussas, uns doces... Durante o Diwali os doces foram especialmente frequentes. Não é difícil descobrir quando chegou comida: basta notar o fluxo intenso de pessoal de todos os pontos do escritório, convergindo na copa. E quem se atrasa 1 minuto já sabe que é muito pouco provável que ainda sobre alguma coisa. Só quando observei este fenómeno é que percebi o sucesso estrondoso dos Pastéis de Belém que trouxe para o pessoal no meu primeiro dia! (um americano até me perguntou “como é que sabias que eles adoram doces??”)

É permitido comer na área de trabalho... e no entanto o escritório está imaculadamente limpo! A explicação para a limpeza é provavelmente a mão de obra barata: de vez em quando lá está um rapaz de cócoras a varrer umas migalhas do chão.

A copa do escritório condiz com o apetite voraz do pessoal: é enorme. Há quem tome o pequeno-almoço no escritório: cereais, leite, torradas... Muita gente almoça diariamente na copa, mandando vir um thali de fora ou trazendo comida de casa. À tarde o pessoal entretém o estômago com algumas chamussas ou doces que alguém traz, com umas torradas com doce, manteiga, queijo, ou ketchup (sim, torradas com ketchup!), umas bolachas ou uns cereais.

Além de comida, a copa conta ainda com uma outra ferramenta motivacional poderosíssima: uma mesa de matraquilhos! Todas as tardes, por volta das cinco horas, verifica-se um novo fenómeno de migração de consultores para a copa, desta vez para disputar emocionantes jogos de matrecos. Obviamente, os melhores jogadores são os empregados que ficam na copa todo o dia (todos homens) e que devem ter milhares de horas acumuladas de treino.



Matraquilhos, escritório

Festas

O escritório onde trabalho aqui em Gurgaon é muito alegre. As pessoas parecem felizes acima da média. Talvez devido a uma maior juventude, ou ao facto de muitos terem entrado na empresa no último ano, o pessoal reclama pouco, sentem-se energias muito positivas, os níveis de cinismo parecem bastante reduzidos. Ou será da cultura ou religião?

Não sei se existe alguma relação de causa-consequência com a alegria descrita acima, mas abundam as festas neste escritório.

Em Outubro aconteceu em Delhi um encontro de colegas da Ásia-Pacífico e todo o escritório foi convidado para um concerto da Indian Ocean, uma banda indiana super-famosa (pelo que entendi, talvez algo como se os Xutos fossem tocar no jantar de Natal da empresa em Portugal? ou o Jota Quest no Brasil?).

Em Novembro houve uma festa de Diwali no escritório. O Diwali, conhecido como “festival da luz”, é mais ou menos tão importante para os hindus como o Natal para os cristãos. Celebra a vitória do bem sobre o mal, o regresso de Rama depois de ter vencido Ravana, demónio rei de Lanka. No seu regresso, Rama foi recebido com luzes do sul ao norte da Índia, e por isso as pessoas celebram o Diwali iluminando as casas e decorando-as com flores. Fizemos o mesmo no escritório. Para estimular a criatividade, foi organizado um concurso de decoração. A minha zona ficou em 2. lugar! Claro que não foi graças a mim, até porque as minhas humildes contribuições foram todas vetadas.



Decorações de Diwali no escritório


Achei apropriado vestir roupa tradicional nesse dia, mas terceirizei a missão de comprar uma kurta ao meu motorista.



Vestidos a rigor

Em Dezembro houve uma “holiday party” (o equivalente a jantar de Natal, com a diferença que aqui não há Natal). Tanto na festa de Outubro como na de Dezembro actuou uma banda de colegas tocando covers de músicas conhecidas (algumas indianas) com as típicas letras reclamando das horas de trabalho, do chefe chato, etc... Nerdices de consultores, é verdade, mas divertido.

Mas o mais impressionante é que entre Outubro e Dezembro houve sete casamentos (sete! 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7!!) de colegas do escritório. Como é possível?? O escritório tem umas 100 pessoas... muitas já são casadas (os indianos casam em média um pouco mais cedo do que nós “ocidentais”)... Não podem sobrar muitas para casar no próximo ano! Entendi que parte do fenómeno é explicado pelo costume de casar nesta altura do ano (e reparei em muitas festas de casamento nos lugares por onde passei nesse período).

Nomes

A adaptação ao novo escritório foi imediata na maior parte dos aspectos. Afinal, nada muito diferente de ir fazer um projecto em El Salvador, México, Dubai ou Milão.

A minha principal dificuldade no início (e ainda agora é difícil) foi lembrar os nomes do pessoal! Nomes estranhíssimos que, na maioria, nunca tinha ouvido antes. Que chato esquecer até o nome das pessoas com quem falava mais! E que complicado nem sequer conseguir adivinhar se o nome (por exemplo quando recebia um e-mail) era de homem ou de mulher.

Só para exemplificar, adivinhem o sexo das pessoas na minha equipa actual: Srivatsan, Pankaj, Satyam, Gaurav, Shailendra, Deepinder, Suraj. Então? Quantas mulheres na equipa? Nenhuma – tudo homens.

O facto de um nome acabar em “o” ou em “a” não ajuda: primeiro, porque poucos nomes terminam em “o” ou “a”, e, segundo, porque existem nomes de mulher terminados em “o” e nomes de homem terminados em “a”.

Por exemplo, para definir as burocracias da minha vinda para a Índia, troquei uns e-mails com alguém chamado Rinkoo... que eu pensei sempre ser um homem! Acho que consegui disfarçar a surpresa quando finalmente conheci a Rinkoo... Felizmente, quando escrevemos em inglês não fica muito evidente o sexo da pessoa... pelo menos não quando não são necessários formalismos de “Mr.” e “Ms.”.

De todos, o nome mais engraçado que já ouvi é... Ashish! (Imagino que se fosse uma mulher os pais teriam escolhido o nome de Marijuana...).

Gurgaon

O escritório onde trabalho fica em Gurgaon, uma cidade a uns 30 kms de Delhi (entre 40min e 2h de distância, dependendo do trânsito). Não sei se existe um “centro da cidade”. Gurgaon parece ser um enorme local de construção, com muitos edifícios em obras, muito pó, muitos edifícios de escritórios novos, uma estrada com vários centros comerciais consecutivos (uns 6? 8?), construídos nos últimos 1 ou 2 anos. O edifício onde fica o escritório é tão recente (1 ano?) que nem sequer aparece nos Google Maps. A auto-estrada que passa junto ao escritório e que vem do aeroporto não existia quando passei por aqui há 2 anos. Dá mesmo para ver na rua o que é isso de crescimento de PIB de 8%...


Escritório em Gurgaon (sim, bem no meio da foto)

Comida

Como é a comida aqui? Simples: caril!!! Caril caril caril caril! Imagino que o meu suor já cheira a caril...


Eu gosto da comida, e aqui é fácil ser vegetariano (e eu tenho sido praticamente ovo-lacto-piscio-vegetariano desde que sofri uma overdose de carne nas serras gaúchas no Carnaval). A minha refeição diária até é bastante parecida com o arroz com feijão brasileiro: sempre arroz, normalmente também pão, muitas vezes feijão ou lentilhas (em caril) e caris de várias coisas. 80% dos meus almoços são thalis: uma espécie de "combo" do McDonalds, que inclui um ou mais tipos de pão, arroz (branco ou não), e várias tacinhas com caris diversos de legumes e queijo (e custa menos de 1.5 Euro onde eu costumo almoçar!). Os thalis são óptimos para quem, como eu, não gosta de pensar muito ao escolher o que comer e tem uma dificuldade extrema em lembrar-se do nome do que comeu anteriormente.




Thali (foto eventualmente sujeita a copyright; obtida em busca Google Images...)



A sobremesa típica é gulab jamun: uma bola de quatro ou cinco centímetros de diâmetro, pelo que consigo identificar, feita de farinha e ovo (e queijo? manteiga?), frita, e depois mergulhada em calda de açúcar.




Doçaria de rua, Mathura (gulab jamun sao aquelas bolas castanhas na panela do lado direito)



Os temperos são sempre fortes, não necessariamente picantes, mas pelo menos intensos, e o paladar acaba por ficar cansado. É difícil sentir o “verdadeiro” sabor dos alimentos porque está escondido atrás de um monte de especiarias potentes. E é muito difícil variar de sabores indianos: mesmo quando encontro comida italiana, por exemplo, a pasta e a pizza têm também temperos indianos fortes!!

Roupa

O colorido das roupas das indianas é espectacular. Depois de ter passado alguns meses a trabalhar em projectos de moda, de ouvir tanto falar das tendências de cor para a próxima estação, de ver literalmente monótonos guarda-roupas em cinzento, preto, castanho ou – que ousadia! - verde... é refrescante ver quão alegremente as mulheres se vestem na Índia. Vermelho, laranja, amarelo, verde, azul... o arco-íris completo nos seus tons mais vivos.

É interessante que os trajes tradicionais são usados por pessoas de todas as classes socioeconómicas. No dia-a-dia no trabalho, várias colegas vestem saris ou outras roupas tradicionais, e muitas pelo menos à sexta-feira.

Gabo-lhes a paciência: o sari é um pedaço de tecido de vários metros que a mulher enrola em volta do corpo. Pelo que entendo, o processo não é nada simples (as colegas estrangeiras que experimentaram tiveram de pedir ajuda a especialistas locais para se vestirem). E existem vários estilos de colocar o sari, conforme a região ou país. Portanto não se pode dizer que seja uma roupa prática.




Turistas indianos entrando no Forte Vermelho, Nova Delhi


Até na praia as mulheres vestem saris. Não só na areia como também quando tomam banho! As indianas “decentes” não parecem gostar de mostrar muito o corpo. O mais engraçado é que há uma forma bastante habitual de enrolar o sari que deixa a parte lateral da barriga da mulher, até ao umbigo, à mostra. Mais indecente que as barrigas brasileiras. E as barrigas das mulheres indianas são em geral bastante ahn... fofinhas.




Praia de Baga, Goa


Como de costume, os homens são uns aborrecidos. No dia-a-dia não se vestem de forma muito diferente ao resto do mundo. Apenas em festas aparecem com trajes tradicionais, normalmente bastante coloridos, mas menos ousados que os femininos.

Comboios

A Índia tem uma impressionante rede ferroviária, para carga e passageiros, cobrindo um grande número de cidades em todo o país. Tenho usado o comboio para algumas viagens de fim-de-semana e recomendo fortemente – alguém que venha à Índia e não ande de comboio perde uma parte importante do país. A velocidade média é lenta – uns 40 km/h – tornando destinos longínquos impraticáveis quando o tempo não abunda. A pontualidade é variável: por vezes absolutamente britânica (no sentido figurado, já que não tenho os comboios britânicos em tão boa conta), outras vezes com atrasos significativos, chegando a 100% do tempo previsto de viagem. Mas o importante é que os comboios e as estações de comboio na Índia são um micro-mundo fascinante, que a velocidade caracolesca e os eventuais atrasos até permitem apreciar melhor.

Os comboios, dependendo da classe, estão mais ou menos cheios. Tenho viajado em 2ª classe, que tende a sobrelotar em alguns percursos. Os lugares são marcados, mas o cumprimento não é rigoroso, e por vezes não sobra um centímetro quadrado desocupado, com muitas pessoas viajando várias horas de pé (felizmente ainda não me calhou a mim). Em certos trechos a ocupação deve chegar a uns 150% dos lugares disponíveis – uma excelente utilização de capacidade! Mas não acredito que toda a gente tenha bilhete para aquela classe. Até porque nunca vi revisores de bilhetes na 2ª classe, portanto deve haver muitos abusadores sem bilhete ou com bilhete de classe inferior.

Mesmo em carruagens lotadas, vão passando vendedores de comida e bebida o tempo todo: amendoins, salgados, chamussas, chá, café, água, refrigerantes... Também há quem leve a sua comida, por vezes refeições completas, com caris bem gordurosos e pão (fico sempre a pensar como lavam as mãos...). Claro que alguns destes alimentos caem para o chão (as cascas de amendoim parecem sofrer uma força gravítica particularmente intensa...), tornando algumas carruagens bem sujas (mas devem ser lavadas diariamente, e/ou no inicio de cada viagem, porque até não costumam estar muito sujas).

Tenho comprado os bilhetes pela Internet, num site bastante sofisticado do ministério dos Transportes, que permite pesquisar e comprar bilhetes para todas as ligações e classes (exceto a 3ª, a mais baixa) e até permite pagar o bilhete diretamente a partir da minha conta bancária indiana, sem precisar de cartão de crédito. É impressionante como a maior parte dos comboios já não tem vagas poucos dias antes da viagem, em qualquer classe! Os meus destinos de fim-de-semana acabam por ser escolhidos em função dos lugares disponíveis.

Porque não está à venda online e porque parece ser confusão a mais, ainda não experimentei a 3ª classe – menos confortável, com bancos de madeira – e não sei se me animo a experimentar. Até Gandhi – o Mahatma – reclama da 3ª classe na sua autobiografia, dedicando ao assunto várias páginas. Num dos capítulos, chamado “Aflições dos passageiros de 3ª classe”, Gandhi comenta que facilmente encheria um livro com experiências em viagens de 3ª classe, e lamenta-se por ter deixado de viajar em 3ª classe por motivos de saúde. Suspeito que as condições não mudaram muito nos últimos 100 anos.




Estação de comboios, Mathura



As estações estão invariavelmente cheias de gente. Observam-se pessoas (muitas!) ocupadas nas mais diversas atividades do dia-a-dia: dormir (no chão), comer, tomar banho, defecar, trabalhar (engraxar sapatos, vender comida, jornais e revistas, ...). Muita gente nem sequer parece estar à espera de comboio: simplesmente "estão ali"? Vivem ali??

E, claro, também circulam as omnipresentes vacas, à caça de alimento nos caixotes de lixo. Só não consegui ainda encontrar vacas dentro dos comboios.

Vacas

As vacas são omnipresentes na Índia. Onde quer que vá, lá está uma, duas, três, dez, vinte vacas. Nos primeiros dias achei as vacas magras, esqueléticas, subalimentadas... Depois observei melhor, eliminei os filtros da minha mente preconceituosa e formei um ponto de vista mais positivo: as vacas na Índia são saudáveis, não são obesas, estão em forma, são ágeis! Acho que pela primeira vez vi vacas galopar, dar saltos... Enquanto em países mais desenvolvidos e carnívoros as vacas são sobre-alimentadas, para ganharem peso e serem cobardemente assassinadas e comidas, na Índia elas comem apenas aquilo que precisam (ou podem...) e por isso são elegantes, musculosas... felizes? Pelo menos são seres pouco stressados: é especialmente admirável a tranquilidade com que estes bovinos se passeiam entre trânsito movimentado sem sofrerem acidentes (pelo menos até agora não vi nenhum; há dias vi uma vaca que parecia estar morta no separador central de uma avenida movimentada, mas suspeito que só estava a dormir). E parecem ter vida mais fácil que muita gente por estes lados, apesar de andarem sempre em volta de lixo.




Vaca, Vrindavan


Aqui está uma semelhança entre vacas (pelo menos as indianas) e moscas: gostam de andar em roda do lixo. Outra semelhança é que é frequente encontrar lugares vazios em que só andam vacas – é caso para dizer que o lugar está “às vacas”...

Quando vim à Índia em 2005 encontrei num templo em Pushkar um aviso interessante ao lado da caixa de ofertas: "As ofertas destinam-se à manutenção do templo, ajuda financeira a vacas, cidadãos idosos, santos, peregrinos e pobres, (...)" (suponho que a ordem indica prioridade).

Matrix

A Índia é realmente um país bastante caótico. Pobreza omnipresente, miséria frequente, muita gente, lixo, vacas (e seus derivados), trânsito (carros, camiões, auto e ciclo-riquexós, bicicletas, vacas, vendedores ambulantes...), ruído, incerteza, desconforto... Tudo isto provoca algum stress – é realmente necessário ser muito “zen” ou ter bastante “estômago” para suportar algumas situações de maior confusão.




Trânsito em Delhi (da esquerda para a direita: ciclo-riquexó, carrinho de gelados, auto-riquexó, autocarro)



Há dias alguém me perguntou: “o que é mais terceiro mundo: Índia ou Brasil?”. Respondi “Índia” sem hesitar – não tem comparação...

Porque será assim? Uma matemática simples ajuda a entender a situação: a Índia é cerca de 2,5x menor que o Brasil em território, e 6x maior em população. Isso significa que a densidade populacional é 6 x 2.5 = 15 vezes maior! (É verdade que o Brasil é um país bastante despovoado – basta ver a Amazónia – mas a Índia também tem muitas áreas sem gente.) 15x mais pessoas implica, entre muitas outras coisas, 15x mais dejectos, mais lixo... Gera-se um ciclo vicioso em que o lixo é tanto e tão omnipresente que deitar um pouco mais para o chão ou para o rio não faz diferença. E é verdade que não é fácil encontrar caixotes de lixo na rua. Já me aconteceu várias vezes percorrer quilómetros com lixo no bolso até encontrar onde deitá-lo – passou-me pela cabeça deitá-lo no chão, mas não me pareceu que esse acto fosse deixar o mundo melhor...




Rio Yamuna, em Vrindavan (cidade santa, onde Krishna passou os primeiros anos de vida) – não muito longe daqui, as pessoas banham-se no rio, e banham as suas crianças, para purificação...



Já sabia que a Índia era assim e por isso mesmo é que vim. Porque sou masoquista e gosto de confusão? Porque sou sádico e gosto de ver miséria alheia? Nem uma coisa nem outra... É difícil de analisar e ainda mais de explicar... Viver continuamente em ambientes bonitinhos, de alto conforto material, por vezes faz-nos esquecer como é o mundo “lá fora”. Passar algum tempo na confusão ajuda a sair da matrix do nosso mundozinho controlado, egocêntrico ou até egoísta, ajuda a estimular os sentidos e a mente, a alertar-nos para o outro e, eventualmente, muda-nos o coração e molda a nossa vida. Ao colocar as coisas em perspectiva também passamos a valorizar muito mais o nosso habitual conforto material, sobre o qual tantas vezes reclamamos.

No mínimo, conhecer, entender e até ajudar a Índia é relevante por motivos estritamente egoístas: é improvável que num país as pessoas vivam em condições tão piores que noutros países, ou tão piores que outras pessoas no próprio país, sem que em algum momento haja algum tipo de revolução. O mesmo pensamento é relevante para a América Latina em geral. De um ponto de vista cínico (ou realista, para os mais cínicos), a distribuição de riqueza só é necessária exactamente na quantidade mínima que evita essa revolução, que mantém quem vive pior conformado com a sua situação.

Uma coisa é verdade: a Índia parece bem mais segura do que a América Latina, ou pelo menos do que as grandes cidades como São Paulo ou Rio de Janeiro. Aqui parece improvável que me roubem o computador ao sair do escritório. Nunca ouvi falar de alguém ter sido assaltado à mão armada... Por alguma razão (cultural? religiosa?), a criminalidade é bem mais baixa na Índia.

É claro que há muita coisa bonita na Índia. Simplesmente não é fácil encontrar coisas bonitas longe de confusão.

A minha cidade indiana preferida até ao momento é Chandigarh, capital dos estados de Punjab e Haryana, uns 250 kms a norte de Delhi (cerca de cinco horas de comboio). A cidade não tem praticamente nenhum marco turístico que justifique a viagem (fui lá porque era um dos poucos destinos para onde havia bilhetes de comboio disponíveis em certo fim-de-semana). O que é especial em Chandigarh é que tem menos lixo, menos confusão que todos os outros lugares que já visitei, e tem muitos parques verdes e limpos (consegui completar um treino de corrida de mais de duas horas em que uns 2/3 foram sobre relva ou terra). Em 1947, quando a Índia ficou independente e o Paquistão se separou, Lahore, principal cidade Punjabi, ficou do lado muçulmano e o estado indiano de Punjab ficou sem capital. Nehru (primeiro primeiro-ministro da Índia) achou que era uma excelente oportunidade para construir uma cidade a partir do zero. A cidade foi planeada pelo famoso arquitecto Le Corbusier e construída entre os anos 50 e 60. Está dividida em sectores de 1200 x 800 metros, com avenidas espaçosas entre eles. Se procurarem no Google Earth ou em maps.google.com rapidamente entendem o plano da cidade.




Chandigarh (maps.google.com)



Em Agra, a umas quatro horas de comboio de Delhi, está o famosíssimo Taj Mahal. Ainda não o visitei desta vez – estou à espera de visitas que com certeza quererão ir lá.

Em Delhi encontrei, por exemplo, os jardins Lodhi. Extensos, verdes, bonitos, tranquilos, surpreendentemente limpos. Um dos poucos lugares onde dá para dormir uma sesta na relva sem ruído e sem preocupações higiénicas.



Jardins Lodhi, Nova Delhi