Confesso que não sou grande fã de “santos”. Ou de heróis. Muito menos de ídolos. Vejo valor em mantermos referências, exemplos, pessoas ou seres, actuais ou passados, próximos ou longínquos, que nos inspiram a sermos melhores. E nem importa demasiado se essas referências são ou foram exactamente como as imaginamos: o que importa é que a sua existência tal como a concebemos tenha efeitos positivos. Também não importa se essas referências são perfeitas (especialmente porque a “perfeição” é como as situações ideais nos modelos científicos: não existe): basta que possuam uma qualidade inspiradora (e que não possuam outras causadoras de escândalo).
Não pude deixar de reflectir sobre o tema da santidade ao ver Nuno Álvares Pereira hoje oficialmente reconhecido como santo pela Igreja Católica. Como é isso de a Igreja Católica decidir que alguém é santo? Porquê fazê-lo? Para quê? É bom, mau, ou nem por isso?
Quem é santo?
Se eu bem entendo o imaginário católico, santo é todo o ser humano que está em comunhão com Deus, que está no céu (e portanto não está terrenamente vivo, nem está no limbo, purgatório ou inferno). Portanto, aceitando esta definição, os santos oficialmente reconhecidos (aqui uma boa lista) são (espero!) um infinitésimo da brutal massa de santos existente.
Como são validados estes santos “oficiais”?
Segundo Catholic Online, o processo de canonização que a Igreja Católica segue para nomear um santo é utilizado desde o século X, para colocar ordem na até então “democrática” aclamação popular. Os procedimentos actuais foram aprovados pelo Papa João Paulo II em 1983 (na altura abolindo a famosa figura do Advogado do Diabo). A instituição responsável pelo processo é a Congregação para as Causas dos Santos. Pode ser candidato a santo alguém morto há mais de cinco anos cuja reputação popular de santidade tenha vindo a aumentar. Resumidamente, um santo passa por três etapas para ser reconhecido:
- Venerável: o Papa proclama o candidato venerável, após avaliação da sua vida e obra
- Beato: a pessoa é beatificada, após verificação de um milagre póstumo por sua intercessão ou da sua condição de mártir (ter morrido pela causa religiosa)
- Santo: o beato é canonizado, após verificação de um segundo milagre
O mais estranho neste processo é a verificação de milagres. Por definição, é impossível provar cientificamente um milagre, portanto tem de ser baseado em... fé? A Congregação para as Causas dos Santos investiga os supostos milagres e exclui os que sejam explicáveis cientificamente. Obviamente, ser inexplicável cientificamente é uma condição necessária mas não suficiente para um evento ser sobrenatural. Tendo em conta que a ciência está em constante mudança, um fenómeno inexplicável hoje talvez não o seja amanhã. Porque é que a Igreja se há-de expor dessa forma a errar?
Porquê reconhecer santos?
Os santos são uma poderosa ferramenta de marketing. Alguém que levou uma vida verdadeira e profundamente boa, de felicidade, amor, boas energias, radical abertura e entrega ao próximo, à “salvação do mundo”. Alguém com quem as pessoas “normais” se podem identificar, parcial ou integralmente. Alguém que inspira boas vidas: completas, equilibradas, plenas de paz e amor, felizes e geradoras de felicidade. Os santos são claramente úteis pelo bom exemplo que representam, pelas mensagens que transmitem.
Porquê reconhecê-los oficialmente? Porque não deixar os fiéis decidirem quem os inspira, sem intervenção da Igreja? Talvez haja outras razões, mas certamente será para pôr alguma ordem no processo, para garantir que os exemplos seguidos pelos católicos estão em conformidade com as crenças da Igreja. Mas será necessário um processo tão complexo e consumidor de recursos? Na minha irrelevante opinião, não. Bastaria um processo mais ligeiro de validação, de sugestão, de recomendação, sem nomeações oficiais.
São Nuno
foto: Vaticano
Nuno Álvares Pereira é uma personagem da história de Portugal que tem obviamente inspirado muitos portugueses. Nunca me senti particularmente atraído pela personagem (não, não é por alimentar a ambição de me tornar o primeiro São Nuno!). Para mim sempre foi um guerreiro conhecido por andar por aí a matar vizinhos do reino de Castela, defendendo a independência de Portugal (que na altura era um país mais ou menos tão jovem como os EUA hoje, com 240 anos). Espero que o seu militarismo não tenha sido uma razão para a sua canonização, apesar de o Papa se ter referido a ele como “herói e santo de Portugal”. Quanto a se ter tornado monge carmelita, abdicando dos seus bens, nos últimos 8 anos da sua vida, não é uma decisão vulgar, mas por si só também não deveria ser razão de devoção.
Sinceramente, não sei que exemplo nos dá a vida de Nuno Álvares Pereira. Para mim, o balanço é negativo. Nunca ouvi falar de qualquer arrependimento pelos seus homicidas actos militares (antes pelo contrário, consta que ele esteve sempre disponível para lutar pelo país), o que só por si, à luz dos mandamentos, deveria condená-lo ao inferno, não? Ou que raios significa aquele “Não matarás”? Será, ao bom estilo do Antigo Testamento, “Não matarás a não ser que seja estrangeiro”? Até poderia compreender um argumento a favor da defesa da independência se os invasores tivessem intenção de escravizar e martirizar os portugueses, mas não era certamente o caso (os galegos, bascos e catalães não parecem ser povos em sofrimento).
Desejo que os devotos deste novo santo reparem no exemplo positivo que os leve a uma vida santa e critiquem os comportamentos duvidosos para que não se infiltrem no efeito inspirador.
Santos pecadores
É curioso como tantas histórias associadas ao catolicismo repetem o padrão do terrível pecador que se converte e se torna modelo de santidade. Essa é a história recorrente de muitos santos que passaram anos importantes das suas vidas a fazer asneira (por exemplo: Santo Agostinho playboy; Santo Inácio vaidoso, mundano; São Paulo perseguidor de cristãos) e, de repente, uma visão, uma iluminação, a conversão. Nos filmes, é aquele momento em que surgem intensos raios de sol entre as nuvens, ouvem-se celestiais acordes de órgão, um aleluia... (Como na cena dos Blues Brothers que podem ver abaixo.)
O livro Saints Behaving Badly: The Cutthroats, Crooks, Trollops, Con Men, and Devil-Worshippers Who Became Saints (Santos Mal Comportados: os assassinos, escroques, prostitutas, condenados, vigaristas e satanistas que se tornaram santos) descreve as vidas de 28 pecadores que se tornaram santos. Li vários capítulos online (na Amazon, clicando em “Look inside!” e depois clicando sucessivamente em “Surprise Me!” e na mudança de página). São resumos bastante superficiais da vida de cada pessoa, que valem pouco por si só. Tratando de pessoas que mudaram profundamente a sua vida, senti falta de talento literário para transmitir o radicalismo dessas conversões. Mas, como conjunto, o livro transmite uma importante mensagem de esperança: se até um pecador tão pecador pode ser santo, porque não eu?
Como acontece essa transição de pecador a santo? Em muitos casos, há um evento específico na vida do pecador (um acidente, uma doença, uma perda) que o obriga a parar, a reflectir, a colocar a vida em perspectiva e optar por viver a sério. Noutros casos, é uma conversão progressiva, fruto do contacto com uma actividade ou pessoas que influenciam a mudança. Apesar de não ter tido o privilégio de experimentar uma vida de intenso pecado (pelo menos na minha bitola), percebo que as boas mudanças vêm mais do silêncio do que do ruído, mais da paragem do que do movimento. E também do ambiente em que vivemos: se não mantivermos agudo espírito crítico, é fácil que nos tornemos iguais àqueles com quem convivemos habitualmente – se não for uma opção consciente, talvez não corresponda ao nosso caminho de felicidade. Daí que recomende vivamente, a qualquer pessoa, religiosa ou não, que queira viver bem, paragens frequentes: uns segundos ou minutos por dia de meditação, oração ou outra forma de parar, um sábado, domingo ou outro dia de descanso, um retiro, caminhada espiritual, férias realmente merecedoras desse nome...
Santos “normais”
Um tipo de santo que parece menos frequente é o de gente “normal” com comportamentos extraordinários. Os poucos santos que consigo recordar (eu sei que não sou muito culto) estão todos associados a ordens religiosas. Então afinal não há esperança! Se para eu ser santo tenho de entrar num convento, 'tão mas é malucos! E se não tenho qualquer hipótese de ser santo, então vou mas é pecar à vontade! Perdido por cem, perdido por mil!
Calma, calma, calma! Há esperança. Consta que existem por aí alguns santos leigos. O livro Secular Saints: Two Hundred Fifty Canonized and Beatified Lay Men, Women and Children consegue listar 250. Hmm... óptimo, então talvez não seja necessário entrar para o convento...
Então e os santos “normais” não reconhecidos oficialmente? Os santos parciais, que talvez sejam inspiradores em determinado aspecto das suas vidas mas criticáveis em outros? São as pessoas com quem nos cruzamos todos os dias. As personagens que nos fazem pensar, que nos obrigam a parar, a reflectir, que nos inspiram, que nos desafiam a melhorar. Se tomarmos como referência o melhor de cada pessoa à nossa volta, rapidamente seremos todos santos!
Que os santos que encontramos diariamente, canonizados, populares ou anónimos, católicos ou infiéis, nacionais ou estrangeiros, nos inspirem e responsabilizem a todos, crentes, agnósticos ou ateus, a sermos melhores a cada dia, a cada hora, a cada instante!
E aqui fica um exemplo de “iluminação” num dos melhores filmes de sempre:
:)
ResponderExcluirComo disse um sacerdote na minha paróquia ontem: "Às vezes ouvimos dizer 'eu não sou nenhum santo'. Mas devíamos ser. Todos os cristãos são chamados à santidade, embora Santo, com maiúscula, só Um, que é Deus".
Seja como for, uma correcção: as beatificações/canonizações não estão sob a infalibilidade papal, e por isso podem ser revogadas (já aconteceu).
Deixa estar, eu sou católica praticante e também não sou assim tão fã de canonizações e "santinhos". Agora o livro dos santos que se portavam mal, esse li-o, e gostei.
Obrigado pela correcção, Tânia! Peço desculpa pela minha fraca investigação. Corrigi esse parágrafo. Beijinhos!
ResponderExcluirA avó Didi não havia de gostar nada de algumas das tuas palavras, até porque ela era fã nº 1 de D. Nuno. Para ela, ele já era santo há que tempos !
ResponderExcluirPortanto, o Vaticano pecou pelo atraso. Tivessem perguntado à avó Didi e poupavam uma trabalheira e um dinheirão.
bjs Caçula
Olá Nuno!
ResponderExcluirA ideia dos santos pecadores é muito inspiradora! "Quer dizer que qualquer pessoa pode ser santa!?". Sim! É verdade! Há coisas fantásticas, não há?! A mim, pelo menos, dá-me esperança.
O nosso grande problema é que idealizamos imenso os santos e, com isso, estragamo-los.
Obrigado pelo desenvolvimento acerca do que é ser santo (oficial) na Igreja Católica!
A questão dos milagres também não me é muito confortável. Ou a vida teve uma vida exemplar ou não teve. Um milagre (que ainda por cima pode muito bem não o ser) o que vem acrescentar?
ABRAÇO!
João.