domingo, 29 de novembro de 2009

O egoísmo de Teresa de Calcutá

Tinha (e acho que ainda tenho) a teoria do egoísmo generalizado: tudo o que fazemos - todos nós, incluindo a Madre Teresa de Calcutá - é, em última análise, egoísta, mesmo que seja para bem alheio. Podemos querer ajudar o próximo, mas a motivação para o fazermos é sabermos, no fundo, no fundo, que isso nos vai fazer sentir bem, felizes, mesmo que a acção em si nos possa custar. Nesta teoria, um egoísta de horizontes largos, que sofre de baixos níveis de cegueira (e portanto vê mais do que o seu umbigo) e reduzida estupidez (portanto toma boas decisões), pode e deve ser feliz, mesmo tendo de passar por grandes sofrimentos.

Esta semana li (ou reli - a minha memória é curta) um artigo sobre a "vida secreta de Madre Teresa de Calcutá", a propósito do lançamento do livro Mother Teresa: Come Be My Light em 2007.



fonte: TIME


O artigo descreve como ela passou quase 50 anos sem sentir a presença de Deus (mais ou menos desde a fundação das missionárias da Caridade até à morte em 1997). Em alguns momentos parecia até duvidar da existência de Deus. Aparentemente ela continuava a fazer o seu trabalho no dia-a-dia, motivando as pessoas em sua volta, conseguindo esconder com sorrisos aquilo que lhe ia na alma, mas profundamente triste.

Fiquei a pensar... Será que Teresa era infeliz, apesar do bem que fazia ao próximo? O artigo descreve uma Teresa que não soa realmente muito feliz... Será que a teoria do egoísmo generalizado está errada? Ou é a "excepção que confirma a regra"? (Aquela frase sem lógica nenhuma frequentemente usada para não ter de explicar algo que não encaixa nas teorias vigentes.)

Talvez Teresa fosse, além de uma mulher de iniciativa e imensamente generosa, algo neurótica? Por quê stressar tanto com isso de "sentir Deus"? Afinal, o que significa "sentir Deus"? Sendo Deus transcendental, parece algo ambicioso querer "senti-lo" (em termos de seis sentidos, ou mesmo da razão ou do coração). Consta que no juízo final Deus dirá "sempre que fizeste isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizeste." [Mt 25,40] Por que não lhe haveria de bastar sentir o carinho dos “pequeninos” com quem interagia no dia-a-dia?

Provavelmente não importa se Teresa era ou não feliz – espero e acredito que fosse, mas não posso fazer nada sobre isso agora. O que importa é se eu sou feliz. Se tu és feliz. Se as pessoas à nossa volta são felizes.

Não acredito em juízo final, nem em Céu nem em Inferno: isso é tudo demasiado longínquo, e portanto difícil de ponderar nas decisões do dia-a-dia. Facilmente me torno um egoísta cego se forem essas as minhas referências. Acredito em céu e inferno aqui e agora. Nesta vida. No presente. Céu é ser feliz, inferno é ser infeliz. Não há juízo final – sou julgado a cada instante da minha vida. E acredito que recebo da vida aquilo que procuro. Vazio se procuro vazio. Felicidade se procuro felicidade.

Chegar à felicidade (ou simplesmente estar vivo) costuma implicar algum tipo de dor – física, emocional, mental, espiritual... Mas dor não tem de implicar infelicidade: posso e devo, equanimemente (algumas ideias sobre desenvolver a equanimidade em “A arte de viver”), com serenidade, observar a dor – “hmm... dói-me...” – aceitando que ela está presente e que provavelmente desaparecerá mais cedo ou mais tarde. E reconhecer que aquilo que estou a viver é em grande parte responsabilidade minha, deriva das opções que fiz, decisões que tomei, ajuda a relembrar o caminho de felicidade que escolhi, que possivelmente exige determinadas privações e provações. E que sentido faz sofrer com aquilo que não está ao meu alcance mudar?

Um exemplo extremo de felicidade que passa pela dor é o de Jesus Cristo quando, pelas três da tarde de uma sexta-feira na Páscoa de um ano próximo do 33, antes de se apagar, gritou "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?" [Mt 27,46]. Acredito que, apesar do sofrimento, Jesus homem estava também egoisticamente a procurar a sua felicidade (sim, espalhando felicidade). Em última análise, meteu-se naquela alhada porque decidiu que era o caminho certo, o caminho da felicidade, mesmo que trouxesse tantas dificuldades.

Não estou a sugerir que é fácil ser um egoísta de horizontes largos, antes pelo contrário. A tendência de desvalorizar o futuro e obter rápida satisfação torna-me muitas vezes cego. E mesmo que não esteja cego, por vezes a minha inteligência está em baixo de forma e nem sempre tomo as melhores decisões. A bulinova sobre a teoria do egoísmo generalizado oferece algumas ideias para tentar seguir o bom caminho: totalmente egoísta, mas comprometido com a tarefa constante de reduzir a cegueira e a estupidez.

Sê feliz e espalha felicidade!


sábado, 7 de novembro de 2009

Timor em mudança

Voltei a Timor-Leste! (depois das visitas em 2003 - exaustivamente documentada nas bulinovas -, 2006 e 2008)

Em 2008, talvez influenciado pelo facto de haver campos de refugiados em vários pontos proeminentes de Dili (ainda efeitos da crise de 2006), pareceu-me que a cidade estava mais ou menos igual a 2003. Os mesmos edifícios em ruínas desde a destruição pós-referendo em 1999, os mesmos buracos nas ruas e passeios, provavelmente já com uma prole digna de uma família timorense, os táxis decrépitos a ameaçar desmantelar-se a qualquer momento enquanto circulavam a 15 km/h...


Mudanças

Desta vez, passado um ano, Dili pareceu-me bastante diferente, em geral para melhor. São certamente impressões superficiais de alguém que só passou uma semana em Timor e não saiu da capital. Mas desejo que as coisas boas que são visíveis a um visitante sejam reflexo de mudanças mais profundas e positivas para os timorenses, que lhes permitam viver vidas mais confortáveis, com mais oportunidades, mais escolhas, mais felizes.

A primeira mudança em que reparei são os táxis amarelos. Não só foram pintados de amarelo como me parece ver menos táxis à beira da morte, alguns até talvez quase novos!



E o trânsito está bastante mais intenso: o número de automóveis deve ter aumentado significativamente. Agora até há filas de trânsito, que abrandam o trânsito dos habituais 20 km/h para uns 10-15 km/h.

Na minha primeira corrida matinal, ao reparar nas mudanças na cidade e no trânsito, não sei por quê, pensei "só faltava ver aqui um BMW!" E uns minutos depois passou por mim um BMW, daqueles com ar de poder ter sido utilizado num James Bond há uns 8 anos. Bastante sobrenatural.

A segunda mudança, evidente para quem anda a pé pela cidade, é a dificuldade em encontrar um buraco onde possa cair! Posso andar muito mais distraído que o habitual sem arriscar a vida a cada dez passos (agora é só a cada 500 passos, talvez?). Não só as estradas estão melhor alcatroadas como foram construídos passeios por toda a cidade.

E a outra mudança muito evidente em que demorei mais a reparar: a cidade está muito mais limpa! E a praia da Areia Branca, ali a 4 kms, também. Explicação: a resolução do Governo declarando sexta-feira de manhã período de limpeza para funcionários públicos de todos os níveis.



No ano passado já existiam alguns semáforos, mas este ano pareceram-me muitos mais. Ultra-modernos, até com contagem decrescente para mudança de cor.



Muitos edifícios foram (ou estão a ser) construídos ou renovados. Até um moderno centro comercial está a ser construído na estrada de Comoro (segundo este artigo, no valor de $30 milhões... quantos anos vai demorar a dar retorno??).

Palacio Presidencial

Igreja de Motael

Secretaria de Estado da Juventude e Desporto

Procuradoria Geral da República

Casa Europa

Banco australiano ANZ



Parques que no ano passado eram campos de refugiados foram arranjados e agora são frequentados para lazer dos dilianos.



A Timor Telecom domina o mercado publicitário, com razoável poluição visual da cidade. As boas notícias são que uma ligação Internet de banda larga já só custa $49 por mês.



No desporto, em Agosto aconteceu a primeira Volta a Timor. Em bicicleta de montanha, claro.



E a federação de futebol em breve vai inaugurar a FIFA House - um dos edifícios mais vistosos da cidade.

FIFA House - Campo da Democracia


Parece-me que há bastantes mais restaurantes de variadas gastronomias. Neste momento é possível experimentar em Dili, pelo menos, comida timorense, indonésia, portuguesa, brasileira, chinesa, tailandesa, vietnamita, japonesa... Até abriu mais um estabelecimento de fast food (em 2006 já havia um restaurante de hambúrgueres) quase com aspecto de McDonald's.



Outras coisas não mudam

O Hotel Timor continua a ser o centro da actividade social e provavelmente política da cidade e do país. Passei lá um dia à hora do almoço e encontrei, sem qualquer combinação, provavelmente todos os meus conhecidos (não timorenses) num raio de 2000 km: cinco pessoas, uma das quais eu pensava que estava em Adis Abeba e não em Dili!

Os governantes continuam muito acessíveis. Por trabalho reuni com o Secretário de Estado da Juventude e Desporto e com o Presidente da República. Também encontrei o Primeiro-Ministro, brincalhão e informal como sempre, na cerimónia de abertura da taça do 18º aniversário do 12 de Novembro (acho um pouco estranho isto de comemorar datas de massacres, mas enfim...), onde ele até jogou futebol.



O catolicismo continua forte. No Dia de Finados (feriado em Timor) não deve haver quase nenhum timorense que não vá ao cemitério levar flores e rezar pelos antepassados, por vezes em distritos a várias horas de viagem. Pelo menos todos aqueles com quem falei tinham ido ou iriam mais tarde, e durante a minha corrida matinal a zona em volta do famoso Cemitério de Santa Cruz parecia tão activa - mas por melhores razões - como nas imagens do 12/Nov/91.


Reflexões

É impossível passar por Timor (ou outro país em semelhante grau de desenvolvimento económico) e não reflectir sobre como se pode viver num país em que há tão pouco. Em que quase nada pode ser dado por garantido. E comparar com a forma como se vive noutros países, em que ao termos quase tudo reclamamos do quase nada que não temos. Esquecemos que todo este conforto não existe por termos nascido com direitos vitalícios especiais. Esquecemos que a água e a electricidade vêm de algum lugar. Que as frutas e legumes não nascem no supermercado. Que o carro e o telemóvel não são apêndices que crescem em quase todos os seres humanos adultos. Que o lixo não se evapora do mundo quando o deitamos no caixote. Em Timor parece mais fácil dar valor a coisas tão simples como um caixote do lixo. Água para matar a sede. Uma brisa para aliviar o calor. Estar vivo.

Também não posso deixar de recordar os muitos anos em que a situação de Timor representava para mim a injustiça do mundo, a opressão dos mais fracos, a causa perante a qual ninguém poderia ficar indiferente. E especialmente recordo o mês de Setembro de 1999, há 10 anos, quando enquanto tentava acabar o meu trabalho final de curso ia vendo as terríveis notícias que chegavam aqui de tão longe. E os portugueses activos como nunca (ultimamente consta que só saem à rua durante Europeus ou Mundiais de futebol), entre concentrações, cordões humanos, flores na água, roupas brancas, faxes, e-mails, destaques em todos os meios de comunicação... Todos por Timor. [aqui uma excelente compilação dos acontecimentos desse mês]

Por que será que parece ser preciso um Timor para nos importarmos com alguma coisa?