“Hello! Hello! Excuse me!”
Quando ele já estava ao meu lado e era impossível continuar a fingir-me surdo, viro a cara para encontrar um homem de baixa estatura com uma caixa de engraxar sapatos na mão.
Para variar, pergunta-me de onde sou. Respondo com a má vontade que vai crescendo proporcionalmente ao número de vezes que a pergunta se repete, já esperando que a conversa seja direccionada para a óbvia transacção comercial... Reparo, satisfeito, que estou de ténis, e portanto será impossível ele oferecer-se para me engraxar os sapatos.
A conversa desenvolve-se: há quanto tempo estou na Índia, quanto tempo vou ficar... “Vou ficar seis meses, trabalho em Gurgaon...”
Em que trabalho? Que pergunta complicada... “Negócios”, respondo. Que tipo de negócios? “Qualquer negócio” (perguntas complicadas, respostas complicadas…).
Ele fica meio intrigado, mas pouco impressionado: “Eu limpo sapatos. Sapatos pretos, sapatos castanhos, sapatos brancos – quaisquer sapatos.”
Trungas – chapadão nas fuças!! Acordo. Interesso-me por este homem baixinho que caminha ao meu lado falando com assertividade, nobreza, auto-estima, orgulho nele próprio e naquilo que faz na vida. Sinto-me a encolher até ficar mais baixo do que ele. Só então reparo como uns segundos antes eu estava a olhar para ele de cima para baixo, desvalorizando a pessoa e a profissão... Sou muito estúpido!
Trocamos boas energias e ele convida-me a sentar ali à frente para conversarmos. Aceito satisfeito, descontraído.
Pergunta se sei falar Hindi, como outros estrangeiros que ele conhece (a quem já limpou os sapatos) que estão na Índia há mais tempo. Respondo “main Hindi sikh raha hoon” [“estou a aprender Hindi”], mas sei muito pouco. Não há problema – o inglês dele é excelente.
Olha para os meus ténis e pergunta onde os comprei, se na Índia ou em Portugal. Foi em Portugal. Há quanto tempo? Há mais de um ano. “São sapatos muito bons! Se fossem indianos já estariam destruídos”, comenta.
Tinha pensado que estava a salvo da transacção comercial, mas ele decide mostrar que também sabe limpar ténis. Saca de uma escova de dentes, molha-a num líquido branco, e começa a esfregar a parte da frente do meu ténis direito dizendo que não me vai cobrar nada. Insisto que não quero que limpe os sapatos – não é uma questão de poupar umas rupias (que sei que ele vai acabar por levar), mas sim de me ser indiferente o aspecto dos meus ténis e saber que os vou sujar de novo rapidamente. Mas, claro, ele não liga e continua a sua demonstração grátis.
Impressionante: a ponta do meu ténis ficou realmente brilhante. Enquanto ele explica que são “só 20 rupias” o meu cérebro roda umas engrenagens até concluir que o mundo ficará melhor se encomendar o serviço: eu ficarei indiferente ao aspecto dos tênis e às 20 rupias, ele ficará orgulhoso por mais um serviço bem feito a mais um estrangeiro, e levará mais 20 rupias para casa.
Tiro os sapatos para facilitar o trabalho. Durante vários minutos ele esfrega-os meticulosamente de uma ponta à outra com a escova de dentes molhada na tal fórmula branca secreta e milagrosa (provavelmente detergente: os ténis ficaram a cheirar a roupa lavada).
Resultado final: reluzentes, como novos! Mesmo sabendo que o brilho não durará muito, é impossível ficar indiferente. Sem dúvida, o homem domina o negócio, tanto a área comercial como a técnica. E eu é que trabalho em “qualquer negócio”!
Pago as merecidíssimas 20 rupias e só então lhe pergunto o nome: Deram (ou talvez Dharam). Apertamos a mão e agradeço, não tanto o excelente serviço, mas muito mais a conversa, as boas energias e a lição do dia. Despeço-me desejando boa sorte e seguimos os nossos caminhos, eu provavelmente mais enriquecido do que ele.