sexta-feira, 18 de junho de 2010

Saramago

E no dia seguinte já não escreveu.

A morte só importa realmente a quem fica. Quem parte deixa saudades em quem lhe sobrevive. E as bulicenas estão de luto pela morte do Saramago hoje. Não por amor, nem por pena, nem particular tristeza. Afinal, nunca conheci o homem. Pelo menos não ao vivo, porque pela escrita parece-me que o conheço bastante.

As bulicenas estão de luto por motivos totalmente egoístas (aliás, como de costume - não são por exemplo as saudades sempre egoístas?): agora sei que tenho um número limitado de obras do Saramago para ler. Talvez leia ainda mais devagar as que ainda não conheço, para as fazer render e melhor saborear. E por que não reler as que li e que não recordo bem? Tenho a certeza de que continuarei a fascinar-me repetidamente pela perspicácia, conhecimento da natureza humana, análise fina da língua, da etimologia, dos significados por trás da fachada.

Fui reler o que escrevi nas bulinovas sobre o Saramago, quando estava em Timor há 7 anos. Continua a ser muito válido. Entretanto li mais uns livros e considero a escrita samaraguiana cada vez mais brilhante. Os livros do Saramago para mim dividem-se entre excelentes e absolutamente espectaculares. Não leio assim tanto, mas entre os que conheço Saramago é provavelmente o meu escritor favorito. Intermitências da Morte é certamente o livro mais divertido. Ensaio sobre a Cegueira (que costumo oferecer a quem nunca leu Saramago) é o mais... murro-no-estômago? Ensaio sobre a Lucidez é melhor que o Contra-informação como caricatura do mundo da política (nacional?) e arredores - igualzinho ao que vejo no telejornal quando passo por Portugal (não sei o que passa nos telejornais de outros países porque vejo zero televisão).

Não li o recente Caim, mas li o mais antigo Evangelho Segundo Jesus Cristo, que também provocou bastante burburinho. O que seria mesmo lindo seria o Saramago enviar de lá onde esteja (se é que "está") um post-mortem com a sua análise do mais-além. Nada que nos surpreendesse se se passasse num dos seus romances.

3 comentários:

  1. Curioso: a notícia da morte de Saramago bateu-me cá dentro... A mim que nunca simpatizei com a sua figura rezingona. Que sempre o achei ressabiado com o mundo e sobretudo com Deus. Sentimento que talvez não fosse senão uma irrequietude, um desejo de mais que sempre o acompanhou.

    Agora a notícia bateu-me cá dentro e surpreendi-me com isso. Acho que é porque nos habituamos a que determinadas pessoas estejam vivas. Simpatizemos ou não com elas, têm um papel importante no nosso mapa do mundo. E quando partem, há um vazio estranho.

    Paz à sua alma! Fico a imaginar como será o encontro com o Criador. Divertido, suponho eu.

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  2. Completamente devota a Saramago, fiquei egoisticamente triste tal como tu. Amo a sua obra e ainda tenho que ler o Caim e a Viagem do Elefante, dos mais recentes, e 2 ou 3 dos mais antigos. Foi um privilégio ter sido contemporânea dele.

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  3. Fiquei com vontade de copiar aqui um dos parágrafos que me põem dez minutos a olhar para uma página...
    E é verdade que dá muito que pensar, mas a seguir o Saramago remata tão brilhante como lógico, e rápido como quem dá um par de estalos, e parte para outro.

    "A culpa foi minha, chorava ela, e era verdade, não se podia negar, mas também é certo, se isso lhe serve de consolação, que se antes de cada acto nosso nos puséssemos a prever todas as consequências dele, a pensar nelas a sério, primeiro as imediatas, depois as prováveis, depois as possíveis, depois as imagináveis, não chegaríamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse feito parar. Os bons e os maus resultados dos nossos ditos e obras vão-se distribuindo, supõe-se que de uma forma bastante uniforme e equilibrada, por todos os dias do futuro, incluindo aqueles, infindáveis, em que já cá não estaremos para poder comprová-lo, para congratular-nos ou pedir perdão, aliás, há quem diga que é isso a imortalidade de que tanto se fala, Será, mas este homem está morto e é preciso enterrá-lo."

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