terça-feira, 5 de agosto de 2008

Ismael



“PROFESSOR procura aluno. Deve ter um desejo fervoroso de salvar o mundo.Candidatar-se pessoalmente.”

Se encontrasses este anúncio, no mínimo ficarias intrigado. Talvez sorrisses, pensando tratar-se de mais uma aldrabice. Ou talvez te indignasses, como aconteceu com o narrador participante nesta história, pois era exactamente aquilo que ele tinha procurado durante tantos anos, enquanto jovem sonhador: alguém que lhe explicasse o que havia de errado no mundo, o porquê da "sensação maluca de nos andarem a mentir sobre alguma coisa". Até desistir da busca, ou pelo menos pô-la bastante de lado, porque, afinal, "quer nos contem mentiras quer não, devemos ainda assim acordar e ir para o trabalho e pagar as contas e tudo o resto".

E eis que, por fim, ele tinha encontrado um professor muito especial, chamado Ismael, capaz de olhar para a humanidade a partir de fora, e que lhe iria ensinar aquilo de que ele precisava de uma forma muito pedagógica, ao bom velho estilo da maiêutica do Sócrates.

Ao longo do livro, Ismael coloca em evidência uma série de questões, muitas delas óbvias depois de explicadas, e apresenta uma visão diferente do mundo em que vivemos e da(s) história(s) do homem, procurando uma escapatória para a queda livre em que se encontra o mundo "civilizado".

Ismael discute sobre como "discernir a voz da Mãe Cultura murmurando ao fundo", identificando os seus inúmeros condicionamentos, como por exemplo a explicação que damos de "como o mundo veio a ser o que é" (o meu trecho favorito é a explicação de “como o mundo veio a ser o que é” versão... alforreca). Apresenta dois tipos de culturas fundamentalmente diferentes na humanidade: os "civilizados", que conhecem o bem e o mal e sabem que o mundo foi feito para o homem, para este o conquistar e governar, e os "primitivos", que vivem nas mãos dos deuses e em equilíbrio com a natureza. A que grupo achas que pertences?

Gosto de ler e há muitos livros que me ensinaram alguma coisa. Mas se há um livro que mudou algo fundamental na forma como vejo o mundo, esse livro é o Ismael. Deveria ser leitura obrigatória na escola, talvez nas aulas de Filosofia, ou nas de Religião e Moral.

Como romance é um livro médio, talvez até mau (as últimas páginas, por exemplo, são bastante dispensáveis). Mas isso é irrelevante. O relevante e incrível é como o Ismael consegue mudar a programação da nossa cabeça para conseguir ver algo tão óbvio (mas ao mesmo tempo tão bem escondido) como “o mundo não foi feito para o homem”. Confesso, envergonhado, que nunca tinha pensado profundamente nisso até ler o livro. Apesar de Copérnico, Galileu, Darwin e companhia, a nossa cultura, em especial a judaico-cristã, programa-nos para pensar que o homem é o centro do universo (mesmo que o neguemos quando discutimos a questão). Que o mundo foi feito para o homem, para fazer dele o que bem entender. Que o homem é um ser especial (claro que é, mas só porque é a minha espécie, tal como uma barata é um ser especial para as outras baratas; afinal, “especial” quer exactamente dizer “relativo a uma espécie”!). Tal como finalmente a Igreja admitiu que o Universo não rodava em volta da Terra, um dia admitirá finalmente que o mundo não roda em volta do homem. Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, ou terá sido o oposto?

Imediatamente após a leitura do Ismael enchi-me de uma vontade incontrolável de “ismaelizar” o mundo, de partilhar o livro e o efeito da sua leitura entre as pessoas à minha volta. Durante uns anos houve uma elevadíssima probabilidade de eu oferecer o livro a amigos em aniversários, natais ou em quaisquer outras datas não comerciais. Ou emprestar o livro dizendo: “quando acabares não mo devolvas – passa a outra pessoa”.

Com certeza a leitura do Ismael não representará a “salvação do mundo” (e até pode ser que não traga nada de novo a alguns leitores). Mas talvez consiga eliminar, leitor a leitor, essa perigosa programação da nossa cultura, que nos autoriza às maiores irresponsabilidades, à maior cegueira na forma como interagimos com o mundo. Seria um bom começo.

Ainda não leste “Ismael”, de Daniel Quinn?? Não percas tempo! Vai até à livraria mais próxima, compra o livro e lê-o urgentemente! Se não quiseres ou não puderes gastar dinheiro, não há problema:
- Vai até à FNAC ou outra livraria que estimule a leitura na loja e lê o livro ali mesmo
- Se não houver uma livraria que tenha o livro e te permita ler sem comprar, avisa-me que te empresto um exemplar

Em Portugal “Ismael” é editado pela Via Óptima. Podes comprá-lo online: aqui em português e aqui em inglês.

Quando acabares o livro, passa a outro e não ao mesmo, e vamos lá salvar o mundo!


Nota: A primeira parte desta bulicena foi adaptada de um artigo escrito em 2000 para a revista CiênciaJ da Associação Juvenil de Ciência.

Nenhum comentário:

Postar um comentário