terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Persepolis

O meu plano ontem à noite era ir dormir cedo e acordar bem cedo para o treino de corrida. Mas alguém tinha feito outros planos.

Na véspera, investigando informação para escrever uma bulicena, passou-me à frente o teaser de Persepolis - um filme de animação sobre a infância e juventude de uma iraniana em tempos de revolução.



Decididamente um filme a ver numa próxima oportunidade, em algum dos frequentes festivais de filmes mais ou menos alternativos aqui em Singapura.

O que não esperava era logo ontem encontrar o livro The Complete Persepolis (no qual o filme se baseou) ali mesmo, em cima da mesa no escritório do meu sócio.



Coincidência?? Talvez não. O livro já estava ali há uns dias e certamente eu já o tinha visto mas não tinha reparado. Até à véspera tinha sido um livro qualquer. Mas agora já não era um livro qualquer: estava ali a gritar "Lê-me!". Trouxe-o para casa, é claro.

Pelas 21h30 sentei-me na cama a ler. Ia ler umas páginas e deitar-me pelas 22h... Mas fui lendo e lendo e lendo... e a certa altura a ideia era ler metade do livro e deitar-me pouco depois das 23h... Mas fui lendo e lendo e lendo... e a certa altura o plano era deitar-me pela meia-noite e deixar o resto do livro para o dia seguinte... Comecei a sentir fome... e fui comer qualquer coisa, já consciente de que ia acabar o livro de uma assentada às horas que fosse. Pela 1 da manhã fechei o livro.

Algo de especial tinha acontecido. Há quantos anos eu não lia um livro de uma vez só? E há quanto tempo não lia um livro de banda desenhada?

Persepolis relata a vida da autora, Marjane Satrapi, entre os 10 e os 24 anos (de 1979 até 1993). Até aos 14 anos viveu em Teerão. Nessa altura os pais mandaram-na para Viena (Áustria) onde achavam que ela teria uma melhor educação, mais livre... e não se meteria em trabalhos. Os 4 anos na Áustria foram bastante agitados, lidando com desafios como choques culturais, transformações da adolescência, pressões sociais (diferentes das iranianas)... e sem manter grande ligação ao que se passava no Irão (na minha visão de puto de 10 anos, no Irão "só" se passava a aparentemente interminável guerra Irão-Iraque, que para mim tinha existido desde "sempre"). Depois de um período mais complicado em Viena, Marjane regressou a Teerão aos 18 anos. Sentia-se estrangeira ali, tal como se tinha sentido estrangeira em Viena. Depois de uma depressão com o choque inicial do regresso e dúvidas existenciais, decidiu voltar a viver. Facilmente se metia em sarilhos relacionados com o seu comportamento "indecente" e a sua frontalidade a criticar o que lhe parecia inapropriado. Estudou comunicação visual, casou-se aos 21, divorciou-se aos 24. O livro acaba com a sua emigração para França (para não voltar, segundo promessa à mãe).

O livro transmite emoções, não só em situações extremas de guerra e repressão, mas também na vida "normal" de uma criança e adolescente com os seus familiares e amigos. Mostra a visão crítica de Marjane sobre a revolução islâmica de 1979 no Irão e as mudanças no país nos anos que se seguiram. Certamente uma das visões possíveis.

Marjane não se tenta promover como a rebelde coerente sempre fiel aos seus princípios. De forma muito honesta, mostra sem pudor virtudes e fraquezas. Excepto em um par de situações em que expressa arrependimento, Marjane não se dedica a julgar os seus comportamentos como bons ou maus. Mas não se inibe de criticar o regime e as suas práticas opressivas e sexistas.

Não entendo de arte gráfica e banda desenhada mas Persepolis pareceu-me excelente pela expressividade conseguida através de desenhos minimalistas, eliminando detalhes supérfluos para focar a atenção no essencial. Puro preto-e-branco, com poucos traços. Detalhes escassos, mensagens potentes. Vejam uma parte do livro aqui.

Não é surpreendente que os livros e o filme tenham tido bastante sucesso no mundo "ocidental": não é uma visão propriamente abonatória do regime islâmico. Mas não me parece que alimente a fogueira do suposto conflito Ocidente-Islão (essa invenção bushiana de inspiração huntingtoniana que infelizmente tem muitos crentes pelo mundo fora). Persepolis não promove generalizações superficiais sobre "bons" e "maus". O mundo de Hollywood e o mundo da propaganda é assim: branco ou preto. O mundo real é complexo, colorido (e, paradoxalmente, Persepolis é a preto-e-branco mas é bastante colorido!), cheio de diversidade mas também de muitas semelhanças. Afinal de contas, nós, humanos, somos todos... humanos. Em todo o lado há pessoas abertas, inteligentes, conscientes dos outros... e há uma ou outra mais cega e/ou mais estúpida.

3 comentários:

  1. Vi o filme há uns anos. Recomendo. Muito. Além de toda a história que conta, é uma experiência visualmente muito interessante.

    A BD, acho que é costume encontrar editada em 2 volumes. Esse “complete” deve ser a compilação dos dois.

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  2. Eu também vi o filme quando saiu, há uns anos. Provavelmente a longa metragem de banda desenhada mais fascinante que já vi e um filme de uma sensibilidade rara, banda desenhada ou não. Alimento para o cérebro. Já não há muito disso nas salas de cinema...

    Agora ando a ler Saramago outra vez, a faculdade está a ter todos os efeitos esperados : )

    Um abraço!

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  3. Infelizmente, não vi o filme e (ainda) não li o livro mas, graças a esta bulicena, não só tive acesso a uma parte do mesmo (que gostei consideravelmente) como tomei conhecimento dele. Agradeço o incentivo à sua leitura e a forma como tu, Buli, o descreveste. Honesta,humana até à medula, colorida e, simultaneamente, a preto e branco!!! Agrada-me particularmente o neologismo gramatical "constas" porque, efectivamente, não de trata só de um "afinal de contas" mas também de um "final de constatações" (claro que também compreendo que tenha sido uma gralha dado o adiantar da hora mas, efectivamente, se foi, gostei muito desse lado...humano!!!!. Obrigada a ti, Buli, ao teu colega "esquecido" que favoreceu a Bulicena e à Marjane que a inspirou.

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