sábado, 22 de junho de 2013

Humana Igreja

Nota a 22/Jun/13: Escrevi este texto (ligeiramente adaptado) em Março de 2009 em resposta a uma discussão familiar sobre notícias da visita do papa a África, que focaram em declarações polémicas sobre o uso de preservativo: "Não se resolve o problema da sida com a distribuição de preservativos. Pelo contrário, o seu uso agrava o problema." (É de notar que 1 ano e meio depois veio a notícia "Papa Bento XVI admite uso do preservativo para travar a sida")


Concordo que a Igreja é muito mais notícia por más razões do que por boas razões, provavelmente de forma injusta, que não reflecte o balanço da sua acção no mundo.

Não concordo que seja devido a puro maldizer. Penso que a causa profunda desse fácil e natural apontar de dedo a pontos negativos da Igreja não é a cegueira de olhar só para o negativo, a tendência humana(?) a dizer mal. A meu ver, a causa está dentro da Igreja e ao alcance da Igreja mudar: a causa é o dogmatismo da Igreja. (Quem não se lembra do Cavaco e o seu "nunca me engano, e raramente tenho dúvidas"? Insensato convite a que estivesse toda a gente atenta ao seu mais mínimo erro.) O papa fala e as pessoas entendem que ele está a propor a Verdade (mesmo que não seja assim), porque ele "nunca se engana e raramente tem dúvidas" (o dogma da Infalibilidade Papal não ajuda, até porque o comum dos mortais provavelmente o interpreta erradamente como "segundo a Igreja, qualquer coisa que o papa diga está certa").

Se a Igreja admitisse a sua natural natureza humana (quantos dogmas foram criados depois do ano 33 d.C. por esotéricos exercícios de interpretação da vontade divina?), abolisse os dogmas, e admitisse que as suas crenças, regras e preceitos são o melhor que se pode conhecer e considerar como verdadeiro em cada momento (não por isso deixando de ter valor!) e que estão abertos a discussão (como faz a ciência: quem já ouviu alguém dizer mal de uma teoria científica que foi considerada obsoleta por ter sido encontrado um melhor modelo do mundo? Fé não é ciência, mas bem poderia aproveitar alguns princípios básicos bastante práticos, úteis e com sentido), então acredito que:

a) Os católicos tomariam mais iniciativa em propor mudanças construtivas na Igreja. Hoje a Igreja parece-me uma instituição tão pesada e inerte que desanima tentar mudá-la, parece que não tenho hipóteses, que estou condenado ao insucesso e frustração logo desde a partida! É como se fosse até à basílica de S. Pedro tentar empurrar as suas paredes! Não conseguirei movê-la nem um milímetro! (Sou fraco, é verdade, um herege, o problema é falta de fé, diria provavelmente o papa se eu lhe explicasse o que sinto.) Espero que pessoas como o meu irmão se continuem a levantar de manhã com garra para empurrar esse peso-pesado! E espero que os votos de obediência não os impeçam de discordar do que não faz sentido! Acho que deveriam abolir esses votos e substituí-los por votos de discordância (talvez a fazer por todos os crismados) = "todo e qualquer membro da Igreja está obrigado a contribuir para o desenvolvimento da Igreja levantando a voz para identificar oportunidades de melhoria e propor medidas concretas e construtivas para as capturar". Hoje parece que fizemos todos votos de silêncio, de conformismo, que na verdade acabam por significar afastamento da Igreja, porque não nos conformamos mas também não acreditamos em mudança.

b) Os católicos viveriam de forma mais responsável, estariam mais atentos na sua vida, sem fazer "outsourcing" do entendimento do que é bom e do que é mau, interiorizando aquilo em que acreditam, porque saberiam que poderia haver formas melhores de viver, que a Igreja talvez não tivesse (ainda) identificado.

c) Os católicos seriam mais felizes, evitando sofrer de crónicos sentimentos de culpa por pecados sem sentido. Hoje os "bons católicos" sofrem de remorsos contínuos porque não conseguem seguir todas as directrizes da Igreja (e talvez até tenham cometido "pecados capitais" que os condenam ao inferno!): porque não foram à missa, porque não se confessaram no último ano, porque são divorciados, porque usaram preservativo... E isso não os incentiva a serem melhores, antes pelo contrário, na minha opinião. Logo no início da missa dizemos "confesso... que pequei muitas vezes...", todas as semanas! Será possível pecar tanto assim? Provavelmente sim. Mas se passamos o tempo a admitir pecados, até que ponto não nos colocamos num estado de fraqueza contínua ("sou pecador, não resisto a tentações...") em vez de nos programarmos positivamente a sermos fortes e íntegros ("sou forte e renovo o meu total compromisso por ser santo"). É mais uma profecia auto-realizadora: se eu acreditar que sou pecador, mais provavelmente vou pecar; se acreditar que sou ou posso ser santo, mais facilmente sou santo. A omnipresença de artificiais pecados católicos não ajuda (pelo menos a mim não me ajudava, quando era mais ortodoxo).

d) Os católicos seriam mais católicos, universais, abertos ao outro, mesmo que o outro seja protestante, hindu, muçulmano, budista, judeu, ateu, agnóstico, animal, vegetal, ou outra coisa qualquer. Por exemplo, acreditar no dogma de que existe uma invenção tão horrível e manipuladora como o pecado original leva a acreditar (pelo menos no meu ingénuo conhecimento da doutrina da Igreja) que quem não é baptizado morre com esse pecado e não tem possibilidade de atingir o "céu"... Se eu acreditar mesmo nisso, o que pensar de todos os "infiéis" do mundo? Que são uns coitadinhos? Que precisam da minha ajuda para lhes formatar as crenças e motivá-los a fazerem-se católicos, porque é esse o único caminho da salvação? Talvez seja isso mesmo que temos (nós, "ocidentais") acreditado ao longo dos últimos séculos e que nos tem levado a tentar impor a outros povos a nossa forma de viver que acreditamos ser a "verdadeira".


Um sistema que promove votos de obediência, que tenta abafar qualquer dissidência (excomungando quem não segue a doutrina), que compreensivelmente elege como papa o mais ferrenho defensor dos dogmas [pelo menos Bento XVI - vamos ver o Francisco; só a diferença entre "XVI" e "primeiro" já é sinal positivo], dificilmente se irá questionar e ter a sabedoria de distinguir o que deve do que não deve ser mudado, ter a coragem de mudar o que tem de ser mudado e a serenidade para aceitar o que não pode ser mudado. O papa responderia talvez que ele sabe perfeita e sabiamente o que deve ser mudado: nada :)

É essa cega e perigosa inércia totalmente programada no sistema que aponto à Igreja, com todo o respeito pelas coisas boas que tem feito. Não é muito diferente do que acontece no Comité Olímpico Internacional ou nas Nações Unidas. O problema é que a Igreja mexe com coisas provavelmente mais importantes que o desporto ou até as relações entre nações. Daí que lhe apontemos o dedo com tanta facilidade.

As minhas sugestões que espero construtivas, mas provavelmente demasiado radicais (admito que tenho de desenvolver a minha paciência e capacidade para propor mudanças marginais que levem no bom sentido):

1. Forme-se uma "Task Force de Mudanças Rápidas e Simples", para rápida implementação de coisas simples que qualquer pessoa sensata questionaria se não tivesse sofrido lavagem cerebral (como me parece ser a ordenação de mulheres, a possibilidade de casamento de pessoas ordenadas, a abolição do pecado original, ...)

2. Forme-se um "Departamento de Inovação" da Igreja, com malta jovem e menos jovem, muitos leigos de diferentes contextos e culturas, e razoável poder de acção para desafiar o status quo e mudar o que deve ser mudado.

3. Institua-se o voto de discordância (descrito acima)

4. Acabe-se com os dogmas - só vem em quarto lugar não por não ser importante (diria que é a base de qualquer abertura à mudança) mas por imaginar que é o mais complicado de mudar. Talvez daqui a 2000 anos?


E o que penso eu fazer?
- Continuar a tomar responsabilidade pela minha espiritualidade, pela minha moral, questionando a doutrina que me foi passada ao longo da vida e formando os meus próprios valores e crenças, muitas vezes partilhados mas muitas vezes divergentes dos da Igreja, procurando viver cada vez mais de forma equilibrada com Deus, o mundo, a natureza, a humanidade, toda ela.
- Continuar a levantar questões que façam pensar - a mim e ao próximo - e tomar responsabilidade e fazer boas escolhas.

Acho que não me animo a tentar mudar a Igreja directamente. Neste momento vejo tanta coisa a mudar que seria difícil manter a paciência de mudar apenas 0.001% ao longo da minha vida. Além de que provavelmente já teria sido excomungado se partilhasse os meus pontos de vista com o papa ou outra pessoa com autoridade para o decidir. O que me leva a pensar se sou realmente católico - não certamente 100% no sentido que a Igreja Católica lhe dá. (Talvez os meus compadres me devessem retirar o título de padrinho das suas crianças! Ou então arriscam ter filhas a crescer com "votos de discordância", a pensarem por elas próprias! :) )

Mas, quem sabe se não me animo? João, avisa a quem posso escrever lá no Vaticano a oferecer os meus serviços de consultor! :)

Um comentário:

  1. Ai primo, como isso vai!
    Isto são tantas heresias que até me sinto impuro só de ter lido até ao fim.

    Abraço,

    Paulo

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