domingo, 27 de julho de 2008

A arte de viver

Quem não gostaria de aprender a arte de viver? É essa a promessa da meditação Vipassana, que significa ver as coisas como elas são.

Não pude deixar de investigar. Dez dias isolado do “mundo real”, em silêncio exterior e interior. Dez horas de meditação por dia. Não vim iluminado, nem sofri uma conversão radical (não tenho jeito para “santo”!). Não foi a conclusão mas antes um novo atalho no caminho eterno (no qual tenho certamente muito a trabalhar) em direcção a uma vida melhor – mais consciente, mais focado no presente, mais equânime, mais feliz:


  • Consciente: A meditação Vipassana desenvolve a nossa consciência [não é a palavra certa, mas não conheço melhor tradução para o inglês “awareness”]. A capacidade de apreendermos o mundo, de identificarmos o impacto em nós próprios através das sensações desencadeadas por cada experiência, de nos conhecermos. É o primeiro passo para assumirmos controlo sobre a nossa vida e deixarmos de viver de reacção em reacção.


  • Focado no presente: A consciência desenvolvida aumenta a nossa capacidade de viver no presente, no aqui e agora, em vez de estarmos constantemente a rever o passado ou antever o futuro. A meditação reduz o ruído, proporciona clareza de mente e capacidade de concentração, ajuda a vivermos focados naquilo que queremos, naquilo que importa. Se decidi estar aqui e agora com este amigo, porque hei-de estar distraído a planear o que vou fazer logo à noite? E logo à noite estarei distraído a planear o amanhã, ou a pensar que deveria ter estado mais presente no encontro com o amigo...


  • Equânime: A meditação Vipassana desenvolve também a nossa equanimidade – a capacidade de aceitarmos com serenidade as vicissitudes da vida. Compreendemos a efemeridade de todas as sensações e tentamos abandonar o apego a sensações boas e a aversão a sensações más. Começamos simplesmente a observá-las objectivamente: “Hmmm... que agradável, o Sol a bater na cara...”; “Que interessante... sinto uma dor na barriga...”. A nossa felicidade deixa de estar refém do que nos acontece, do que possuímos, das relações que temos. Mas este desapego não significa que entramos em estado vegetativo, que passamos a ser insensíveis e inertes. Sentimo-nos em paz, equilibrados, e, em vez de reagir, começamos a agir positivamente, com amor, sabendo o que é mais importante.


  • Feliz: Maior equanimidade traz menor sofrimento e , portanto, felicidade. E desperta também outras qualidades de uma mente pura: amor, compaixão, alegria... Cada vez mais compreendemos como a felicidade dos outros nos traz felicidade, e somos desafiados a amar universalmente (o que não é nada fácil: há por aí uns seres tão difíceis de amar! :) )


Não acredito em caminhos únicos e universais para a felicidade. A meditação Vipassana pode servir para mim mas não para ti. E provavelmente existem outras técnicas que funcionam melhor (avisa se recomendares alguma!). Porque não experimentar? Meditação, como a vida, não é algo que se aprende lendo. Aprende-se praticando. Vê quando é o próximo curso e inscreve-te já: em Portugal ou no resto do mundo (dificuldades financeiras não são desculpa: o curso é gratuito, totalmente dependente dos donativos de participantes de cursos anteriores e do trabalho voluntário de organizadores, professores e cozinheiros). Se não sentes motivação e gostarias de ler mais sobre o assunto, lê o resto desta bulicena, as explicações resumidas no site português ou internacional, ou o livro The Art of Living: Vipassana Meditation: As Taught by S. N. Goenka, de William Hart.



Chamamento

Há mais de 10 anos tinha-me sentido atraído pela meditação, curioso por entender o que era e para que servia. Parecia que faltava alguma coisa importante na minha vida e talvez a meditação fosse a resposta para preencher essa lacuna. Na altura li umas coisas sobre meditação baseada na observação da respiração e fiz incipientes tentativas de praticar. Resultado: descobri uma técnica fantástica para adormecer rapidamente (em um ou dois minutos), essencial para desenvolver a capacidade de dormir micro-sestas.

Durante anos considerei que meditação não era para mim, porque nunca conseguiria permanecer acordado e concentrado na minha respiração por muito tempo. Mas usava a observação da respiração no dia-a-dia como forma de fazer micro-pausas e procurar serenidade entre as múltiplas solicitações, por vezes stressantes, do trabalho (p.ex., observando dois ciclos de respiração no meio de uma discussão mais acesa).

O período de seis meses na Índia reavivou o interesse pela meditação. O evento determinante para o novo investimento na técnica foi o trekking em Sikkim, em Abril, no qual conheci um italiano e uma americana que praticavam meditação diariamente. O italiano emprestou-me o livro “The Art of Living” e a americana recomendou-me que fizesse um curso.

Finalmente, inscrevi-me num curso de 10 dias de meditação Vipassana em Singapura.


Regras e preceitos

Ao inscrever-me fui informado do Código de Disciplina para os 10 dias e comecei logo a ficar entusiasmado. Seguiria cinco preceitos morais para “acalmar a mente”, como base para o treino da concentração. Teria de me abster de:


  • Matar qualquer ser vivo

  • Roubar

  • Qualquer actividade sexual

  • Mentir

  • Ingerir qualquer tipo de intoxicante [Iupi! 10 dias 100% livre de tabaco alheio!!]


Não parecia nada difícil manter-me “limpo”. Mais tarde concluí que não conseguiria cumprir o primeiro preceito: durante o curso matei um ou outro mosquito (depois de atacado) e alguma formiga infiltrada na minha comida.

Os veteranos da meditação Vipassana (já tendo feito pelo menos um curso) tinham ainda de se abster de:


  • Comer depois do meio-dia

  • Entretenimentos sensoriais e uso de adornos

  • Usar camas altas ou luxuosas


Na prática, os preceitos para os novatos como eu não eram muito diferentes destes, já que também não tínhamos acesso a quaisquer entretenimentos ou camas luxuosas (acho eu – ou será que eles dormiam em camas de faquir?). Quanto à comida depois do meio-dia, enquanto eles podiam tomar apenas chá ou sumo à hora do lanche, nós podíamos também tomar leite e comer uma peça de fruta.

Além destes preceitos, havia uma série de regras, que me pareceram razoavelmente razoáveis, com o objectivo de proporcionar a todos os participantes as melhores condições para nos desenvolvermos na técnica prática de meditação Vipassana. Entre outras:


  • Manter silêncio de corpo, palavra e mente, não sendo permitido qualquer tipo de comunicação entre os participantes (gestos, palavras, notas escritas, contacto físico)

  • Manter a alimentação vegetariana simples proporcionada pela organização

  • Não comunicar com o exterior, incluindo cartas, telefonemas e visitas; telemóveis e outros aparelhos electrónicos não eram autorizados

  • Não escrever, não ler, não ouvir música

  • Não trazer gravadores nem máquinas fotográficas

  • Não praticar outras técnicas, ritos e formas de culto, nem trazer talismãs, rosários, ou outros objectos religiosos

  • Usar roupa simples, modesta e confortável (tive de usar calças em vez de calções, apesar do calor húmido)

  • Não praticar ioga ou outros exercícios físicos (por falta de condições para os praticar em isolamento); estávamos autorizados a caminhar nos períodos de descanso, na limitada área a que tínhamos acesso

  • Tomar banho com regularidade e manter as roupas limpas, lavando a própria roupa (depois percebi como era importante esta regra, já que a meditação parecia promover a emissão de odores corporais particularmente desagradáveis)



Formato do curso

O curso decorreu na ilha de St. John – uma pequena ilha de Singapura que parece funcionar como destino de passeio ou local para colónias de férias de crianças. Quem diria que em Singapura seria possível encontrar um lugar tão tranquilo, longe de toda a confusão da civilização.

Éramos uns 70 participantes, cerca de 30 homens e 40 mulheres. Ficámos alojados em camaratas, cada uma com umas 20 pessoas. Homens e mulheres separados, claro (não era desses “retiros” indecentes!). Os homens aparentavam idades entre os 20's e os 70; a etnia mais abundante era a chinesa, seguida da indiana; participavam apenas três europeus.

Só analisei o horário do curso já depois de decidir inscrever-me. Não mudei de ideias, mas pareceu-me bem desafiante: 10 horas de meditação por dia!?! Como é que eu conseguiria manter-me acordado?? 10 horas diárias de torturante luta desigual contra o sono??

4:00 Despertar: Não tinha dificuldades em levantar-me tão cedo. Em alguns dias até acordava antes da hora, sem sono. Ver toda a gente a levantar-se e saber porque é que eu tinha vindo deixava muito claro que era hora de saltar da cama e ir tomar um duche frio (não havia água quente, mas no calor de Singapura isso não é nenhum sacrifício).

4:30-6:30 Meditação: As primeiras duas horas do dia eram geralmente duas horas de excelente concentração, graças ao silêncio proporcionado pela noite de sono. Vinha cheio de motivação para me esforçar bem e o corpo ainda não se queixava da posição incómoda. De vez em quando sentia um certo vazio na barriga, após tantas horas sem comer, e por vezes os pensamentos que me desconcentravam eram imagens de comida (não era fácil manter a equanimidade e não desejar quebrar o jejum :) ).

6:30-8:00 Pequeno-almoço: Quebra de jejum com refeição substancial, seguida de limitados exercícios físicos (caminhar 10 minutos, fazer flexões de pernas) e sesta (10 a 20 minutos).

8:00-11:00 Meditação (com um intervalo de 5 minutos pelo meio).

11:00-12:00 Almoço: O almoço vinha sempre cedo de mais. Ainda não havia fome e já nos ofereciam a segunda refeição grande do dia. Seguia-se sesta.

12:00-13:00 Descanso, e perguntas com os professores: Falei com os professores umas cinco vezes durante o curso, para tirar dúvidas e obter dicas sobre como avançar na técnica.

13:00-17:00 Meditação: O período mais longo do dia, com dois intervalos de 5 minutos.

17:00-18:00 Lanche: Abusava um pouco, dentro das regras, temendo morrer de fome até ao dia seguinte às 6:30 da manhã – comia a minha ração de uma peça de fruta e bebia duas tigelas de leite com chocolate e um pouco de leite condensado. O que me custava mais em termos alimentares não era tanto a quantidade de comida disponível (que era muita ao pequeno-almoço e almoço), mas sim o espaçamento entre refeições. Preferiria ter acesso a comida sempre que tivesse fome, mesmo que as quantidades fossem menores. Seguia-se sesta.

18:00-19:00 Meditação

19:00-20:15 Discurso de S. N. Goenka

20:15-21:00 Meditação: Ah, que fantástica concentração na última meditação do dia! Sabendo que era o período mais curto e que se seguiria descanso até às 4 da manhã, foi sempre o meu período de melhor concentração.

21:00-21:30 Perguntas com os professores

21:30 Recolher e apagar luzes: Hora de dormir (por vezes depois de lavar a roupa, já que só tinha um par de calças comigo!). Rapidamente descobri que não era tão fácil entrar no sono. A meditação ajudava a descansar a mente e reduzia a necessidade de dormir. Era comum acordar mais ou menos a cada hora.


Apreciei muito a estrutura do curso e a forma progressiva com que nos foram propostos desafios cada vez maiores, mantendo abertura para os ritmos individuais dos participantes. Quando parecia que estava a ficar confortável na técnica actual, era proposta uma alteração para entrar num novo patamar. Excelente.


Primeiros dias: mente indomável e tortura física

No dia de chegada (dia “zero”) deu para trocar umas palavras com um ou outro participante, até que logo foi imposto o silêncio que iria durar os seguintes nove dias. É estranho passar o dia ao lado de pessoas com as quais não podemos comunicar. Mas isso ajudou imensamente a reduzir o ruído mental e facilitar a concentração na meditação.

Fiquei surpreendido ao perceber que nenhum dos três professores fisicamente presentes iria dirigir as sessões de meditação (a missão dos professores “assistentes” era ajudar-nos nas sessões de dúvidas diárias). As instruções iam sendo dadas (em inglês, com tradução para mandarim) através de gravações áudio da voz de S. N. Goenka, “guru” mundial de meditação Vipassana, grande impulsionador deste modelo de cursos. Além de dar instruções simples e claras (e muito repetitivas, mas era disso mesmo que precisávamos), Goenka também entoava uns cânticos em pali (língua em que primeiro foram registados os ensinamentos de Buda) no início e fim das sessões de meditação. Segundo ele, o objectivo dos cânticos era criar um ambiente propício à meditação. Acho que funcionava bastante bem, mas não posso deixar de notar que, na minha modesta opinião, Goenka emite uns ruídos bastante estranhos quando “canta” (vejam o vídeo no final desta bulicena para ver se concordam).

Os primeiros três dias foram dedicados a trabalhar a meditação anapanna, que consiste em observar a respiração, entrando e saindo das narinas, para desenvolver o domínio da mente. Exactamente a técnica que eu tinha descoberto anos antes, infalível para adormecer rapidamente. Surpreendentemente, os desafios acabaram por ser outros. Raramente senti sono, e nas poucas vezes em que adormeci durante a meditação a oscilação do corpo ao adormecer obrigou-me a acordar imediatamente.

A primeira descoberta chocante foi quão indomável é a mente! Tinha alguma noção da dificuldade em manter a atenção na respiração durante mais do que uns segundos, mas nunca tinha tentado mantê-la durante horas com tanto afinco. Por mais que me concentrasse na simples tarefa de reparar nas sensações provocadas pelo ar a entrar e sair pelas narinas, a mente escapava continuamente para onde lhe dava na real gana, como um adolescente que faz ponto de honra em nunca obedecer aos pais. No início, quando eu dava por ela já ia na 1.367.979ª sinapse, num tema longínquo derivado por sucessivas associações de ideias de um tema inicial gerado espontaneamente à 4ª respiração. Ao terceiro dia já conseguia manter a concentração durante mais tempo (talvez 1 minuto seguido?) e, mais importante, estava bem mais rápido a detectar fugas da mente rebelde e a trazê-la de volta para o meu controlo. Pudera, já tinha passado quase 30 horas a praticar! (Pondo as coisas em perspectiva: 30 horas de corrida representam para mim 6 a 7 semanas de treino – suficiente para uma boa evolução de forma.)

A outra descoberta também quase imediata foi a tortura física que a meditação representava. Não era nada fácil manter a mesma posição (sentado, aproximadamente em posição de meio lótus) durante tanto tempo seguido. Ninguém nos tinha pedido para usar aquela posição, mas olhando para os professores e participantes veteranos pareceu-me que era a posição certa. Nos primeiros dias sentia dores intensas nas costas, nos joelhos e tornozelos. Quando nos era dada liberdade para meditarmos na camarata, eu aproveitava para me ir sentar na cama e encostar as costas à cabeceira. Muito mais confortável. Mas com o conforto vinha também o sono. Após alguns ajustes ligeiros para estar mais confortável e alguma adaptação do corpo à posição, comecei a sentir menos dores e decidi evitar sair da sala de meditação comum. Parece-me que o fundamental na posição de meditação é manter as costas direitas. Percebi que é isso que me ajuda a manter-me desperto, atento, concentrado. A posição das pernas não parece tão importante, por isso depois do curso decidi adoptar uma posição mais confortável, sentado num sofá ou cadeira sem apoiar as costas, para evitar o risco de lesionar os tornozelos e afectar os treinos de corrida.

À noite assistíamos, numa gravação vídeo, ao discurso diário de Goenka, onde ele punha em perspectiva as experiências do dia, esclarecia aspectos da técnica, e contava algumas histórias, incluindo cenas da vida de Buda. A ênfase era sempre na prática da meditação, e nunca em aspectos filosóficos ou teológicos. Fiquei muito feliz por isso: o que eu procurava era uma técnica prática para aplicar na vida, e não mais uma teoria com a qual não saberia o que fazer. Toda a técnica é ensinada sem qualquer associação ou apelo de conversão ao budismo ou a outra religião (Goenka parece ser um fã de Buda, mas não do budismo, que ele aponta não ter sido fundado por Buda). Gostei de ouvir muito boas mensagens, sugerindo que Goenka só pode ser boa gente: mensagens de amor universal, paz, desejo de que todos os seres sejam felizes... O único momento em que me desiludiu um pouco foi quando Goenka se referiu ao Homem com a habitual, natural e humana visão antropocêntrica do mundo: como um ser mais “elevado”, mais “nobre” que os outros seres.

Para tentar dar uma ideia do que se passava no dia a dia do curso, vejam este vídeo curto que encontrei no Youtube:





Nos primeiros dias aconteceram alguns fenómenos curiosos. Notei que as distrações da mente tendiam a ser lembranças de acontecimentos desagradáveis. Além disso, tive vários pesadelos nas primeiras noites (costumo lembrar-me bastante do que sonho e é raríssimo ter um sonho mau, pelo menos entre os sonhos de que me lembro). Comentei o assunto numa das sessões de perguntas com os professores e foi-me dito que era normal, que a minha mente estava em processo de “limpeza”. A certa altura, em vez de ser distraído da meditação por lembranças desagradáveis, passei a ser distraído por boas recordações: momentos de sucesso, bons amigos, bons velhos tempos... As distracções iam cada vez mais atrás no tempo, parecia que estava a fazer uma revisão completa à minha vida (enquanto era suposto estar concentradíssimo na meditação).


Finalmente, meditação Vipassana

Ao quarto dia a mente estava mais controlada, mais focada, e fomos finalmente introduzidos à técnica de meditação Vipassana (que alívio, não sei quanta motivação me sobrava para tentar estar concentrado apenas na respiração). Meditação Vipassana consiste em observar as sensações não só nas narinas mas em todo o corpo. De acordo com os professores, é suposto podermos observar sensações em todas as partes do corpo em cada momento. Rapidamente percebi que isso não era óbvio. Para garantir que cobrimos todo o corpo, devemos fazer sucessivos ciclos de “scan” de sensações, da cabeça aos pés e dos pés à cabeça passando exaustivamente por todas as partes do corpo (este exercício lembrou-me o Anatoly, treinador de tiro quando comecei a fazer pentatlo há 15 anos, que me ensinou a fazer um “scan” do corpo antes de cada disparo para verificar que estava tudo estável). À medida que percorremos o corpo vamos observando sensações, umas “boas” outras “más”, por vezes dores intensas (por exemplo nas costas ou tornozelos). A tendência natural é reagir, sentir-nos mal e desejar que as dores desapareçam.

O foco da prática de Vipassana é desenvolver a equanimidade: a capacidade de aceitarmos todo o tipo de sensações sem reagir, sem sentir nem desejo nem aversão, mantendo-nos equilibrados, em paz, simplesmente observando objectivamente “lá está esta sensação”. E o facto é que a equanimidade tem um efeito prático bem concreto: ao aceitar uma dor em vez de a rejeitar, em vez de ficar obcecado pelo pensamento “Socorro!! Dói-me! Quero que isto acabe rapidamente!”, que só contribui para intensificar o sofrimento, a dor acaba por se mitigar e até desaparecer. Afinal, todas as sensações são passageiras, impermanentes. Porquê stressar por uma dor se, mais cedo ou mais tarde, ela vai desaparecer? Porquê stressar para que uma sensação boa não desapareça, se, mais cedo ou mais tarde, ela irá desaparecer? Apreciemos o presente tal como ele é. Deixemos de ser controlados pelas sensações.

Equanimidade não quer dizer que devemos assistir passivamente à vida, sem qualquer intervenção. Quer dizer que, sabiamente, devemos intervir na realidade quando possível, mas também saber aceitar com serenidade aquilo que nos acontece que não podemos controlar. Tal como diz a oração mencionada nos comentários da bulicena sobre Martti Ahtisaari: "Senhor, dá-me coragem para mudar o que deve ser mudado, serenidade para aceitar o que não pode ser mudado, e sabedoria para distinguir uma coisa da outra!"

Equanimidade ajuda a eliminar sofrimento, como comprovei empiricamente. Não acreditam? Experimentem. Na próxima vez que se sentirem miseráveis (porque o chefe é um chato, o trabalho não vos estimula, o bebé não pára de chorar a noite toda, a maratona é duríssima, o exame é dificílimo...) em vez de desejarem o fim daquilo que vos afecta e intensificarem cada vez mais a dor, aceitem a realidade, observem-na objectivamente (“hmm... este tipo é um chato / este trabalho é inconsequente / o bebé está a fazer barulho / doem-me as pernas / o exame é difícil”), entendam que ela é passageira (o chefe nem sempre é chato, ou nem sempre será o vosso chefe, não estás condenado a fazer esse trabalho para sempre, o bebé há-de parar de chorar, a maratona só tem 42 km, o exame vai acabar rapidamente) e considerem, com sabedoria, equilíbrio, em paz, como podem agir positivamente (e não reagir) para melhorar a vossa vida (p.ex., compreender o chefe, mudar de trabalho, dar de comer ao bebé quando tem fome, treinar mais para a próxima maratona, estudar mais para o próximo exame). A meditação Vipassana é um treino para sermos cada vez mais equânimes no dia-a-dia, no “mundo real”, e não apenas quando meditamos.

Goenka explica as sensações observadas durante a meditação como sankharas: condicionamentos, reacções da mente que estão registadas em nós (devido a reacções no passado) e que vão emergindo na forma de sensações enquanto meditamos. Se continuarmos a reagir (com desejo ou aversão) a essas sensações, geramos novos sankharas, novos condicionamentos. Mas se nos mantivermos equânimes, não reagindo, não criamos novos sankharas e eliminamos os antigos. À medida que avançamos na técnica, vamos eliminando o nosso “stock” de sankharas. Se eliminarmos todos os sankharas alcançamos a felicidade infinita da libertação do sofrimento – o famoso nirvana.

Sinceramente, não sei se entendo nem se “acredito” neste modelo explicativo. Nunca foi pedido que acreditasse, nem me parece fundamental acreditar. De forma muito prática, estou interessado em perceber se a meditação Vipassana traz benefícios ou não. Mais ou menos como alguém que usa aparelhos eléctricos mas não se preocupa em entender exactamente como funcionam (conhecem alguém assim?). E na prática faz sentido que ao deixar de reagir na meditação, ao aumentar a minha equanimidade, comece também a deixar de reagir na “vida real”, na espontaneidade do dia-a-dia. E isso parece-me bom, muito bom.

Os meus ciclos de “scan” de sensações à volta do corpo duravam 15 a 20 minutos (ou mais, dependendo dos “acidentes” de desconcentração pelo meio), e comecei a suspeitar de quando se aproximava o fim de uma sessão de meditação em função do número de ciclos completados. Claramente, a concentração não era total, e a equanimidade também não: apanhei-me várias vezes a desejar ouvir a voz de Goenka, que sempre marcava o fim de uma sessão. Depois de vários dias não podia deixar de associar uma certa sensação de alívio aos cânticos do homem. Sinal de que tinha de continuar a treinar a equanimidade!

Para nos desafiar um pouco mais, Goenka começou a pedir-nos sessões de “forte determinação”: sessões de uma hora em que deveríamos aplicar-nos ainda mais que o habitual e manter a determinação de nunca mudar de posição. Foram as horas mais longas da minha vida: 80 minutos, talvez 120? Às primeiras tentativas pareceu tarefa impossível: tinha sempre de mudar de posição uma ou duas vezes, quando o desconforto nas pernas se tornava insuportável. Finalmente, a crescente equanimidade e a posição optimizada começaram a permitir ficar praticamente imóvel durante uma hora (por vezes, confesso, precisando de abrir milimetricamente as pernas para recuperar a circulação sanguínea). Era muito engraçado olhar à volta no fim destas sessões e observar as caras de esforço e de alívio.

Até ao sétimo dia senti-me evoluir na técnica. Cada vez conseguia estar mais tempo imóvel, mais tempo seguido concentrado na observação de sensações à volta do corpo, ia ficando mais rápido a detectar fugas da mente e a trazê-la de volta para a meditação, e sentia-me mais equânime, menos reactivo às sensações boas ou más. Consegui, por exemplo, deixar de me coçar quando sentia comichão (o que acontecia frequentemente devido ao suor, provocado pelo calor húmido singapurense).


Últimos dias: crise de concentração

No sétimo dia comecei a sentir uma crise de concentração. Começou a ser muito mais difícil manter-me aplicado na meditação. A mente começou a fugir com frequência crescente, já não para o passado mas agora para o futuro: o que é que vou fazer quando voltar ao “mundo real”, textos que quero escrever, livros que quero ler, treinos para a maratona... Tudo era desculpa para escapar da meditação. Seguindo os conselhos do professor que consultei, comecei a concentrar-me em manter silêncio mental não só durante as sessões de meditação mas também fora delas, nas refeições e intervalos. Isso ajudou um pouco, mas especialmente deu-me uma boa dica para a vida pós-curso: o valor de manter a mente limpa na vida normal, não só durante a meditação. O oitavo dia foi um pouco mais concentrado, mas o nono foi de novo bastante disperso, com poucas sessões em que me tivesse mantido focado na meditação por um tempo decente. Aproximava-se o fim do curso e parecia que a minha mente estava aborrecida, a precisar de outros estímulos. Acho que de certa forma eu tinha desistido de ir mais longe. Houve estágios que Goenka mencionou nas suas instruções que eu não cheguei a sentir. Mas não me senti frustrado – equanimemente observei que estava difícil concentrar-me. Ou, não tão equanimemente, talvez tenha desejado sair para o “mundo real”.

No décimo dia de manhã aprendemos uma nova técnica: meditação metta – de partilha de amor, de boa vontade em relação a todos os seres. Partilhámos e captámos boas energias, enchemos a sala de vibrações positivas. Teríamos o Céu na Terra se acreditássemos profundamente que somos amados e amamos a todos.

A seguir terminou o silêncio. Fomos autorizados, finalmente, a comunicar uns com os outros! O local cobrou nova vida. Abriram-se sorrisos, apertaram-se mãos, descobriram-se nomes, profissões, vidas. Os meus vizinhos na camarata perguntaram: “Tu o que fazes? És algum tipo de atleta??” (resultado de presenciarem os meus limitados exercícios físicos durante o curso e de não verem traço de barriga). Comentou-se o curso, a experiência de cada um (alguns colegas pareciam ter vivido experiências bastante mais místicas e transformadoras que a minha; talvez o facto de estarem à espera disso e eu não tenha contribuído). Trocaram-se contactos. E claro que se gerou ruído que veio desconcentrar as restantes sessões de meditação.

No décimo primeiro dia tivemos uma última palestra de Goenka, dedicada a motivar-nos para continuar a prática da meditação Vipassana ao regressarmos ao “mundo real”. Ele foi muito persuasivo a propor que meditássemos uma hora de manhã e uma hora à noite. Basicamente argumentou que uma das horas viria de dormir menos, já que a meditação reduziria a nossa necessidade de sono (plausível, pelo que tinha observado no curso) e que os benefícios que a prática nos traria claramente compensavam o esforço. Apesar de me parecer um brutal investimento de tempo (mais de 10% do tempo acordado), decidi experimentar, a ver como funcionava.

(Meditei as duas horas recomendadas nos primeiros dias depois do curso, mas acabei por decidir tentar manter apenas a hora matinal. A preguiça, falta de disciplina, e as solicitações, ou distracções, da “vida real” acabaram por geralmente reduzir a meditação matinal para meia hora e torná-la frequente mas não 100% diária. Também aproveito para meditar durante tempos mortos como viagens ou esperas. Sem dúvida, a concentração é muito mais difícil no meio do ruído do dia-a-dia, especialmente quando a prática não é tão disciplinada.)

O curso terminou depois do pequeno-almoço. Não resisti a aproveitar a recuperada liberdade de movimentos para ir correr meia hora à volta da ilha – pelo treino e pela oportunidade de conhecer toda a ilha. Voltámos para Singapura, e cada um à sua vida.


E agora?

Não tenho dúvidas de que este foi o maior desafio físico-mental que enfrentei até hoje. Mantive uma determinação razoável em grande parte graças ao contexto: 10 dias totalmente reservados para uma experiência de descoberta (se não estivesse aplicado na meditação não teria nada para fazer), condições ideais de silêncio interior e exterior (além das condições do curso, o facto de estar “reformado”, ajudou a ter a mente particularmente limpa de preocupações), um grupo grande de colegas enfrentando os mesmos desafios (criando uma dinâmica de grupo de “vamos lá, desistir não é opção”) e professores dedicados que nos enviavam ondas de energias positivas e nos davam orientações para nos ajudarem a andar para a frente. Obrigado!

Meditação Vipassana é uma técnica perfeita? Com certeza que não. Haverá outras formas de obter os mesmos benefícios? Provavelmente sim. Tem bases “científicas”? Sei lá, nem sei se me importa. Teológicas? Idem. Vais continuar a praticá-la? Sim, é a minha intenção, enquanto sentir que faz sentido, sem apegos.

O importante é que parece ser uma técnica útil para viver uma vida melhor e tenciono aproveitá-la para evoluir no que aparenta ser um bom caminho. Na pior das hipóteses, perderei algum tempo. Na melhor, encontrarei verdadeira felicidade. Não soa muito arriscado.

Que todos os seres sejam felizes!



O ciclista africano

Terminou hoje o Tour de France 2008 e, mais uma vez, graças às extraordinárias características genéticas que lhes permitem desempenhos sobrenaturais em desportos de resistência, os ciclistas quenianos dominaram a prova (ver resultados).

Dominaram?? Ninguém viu um único ciclista negro no Tour de France, pois não? Três ciclistas africanos completaram a prova: sul-africanos, brancos, da equipa italiana Barloworld, o primeiro deles, John-Lee Augustyn, em 48°.

Existem ciclistas africanos?

Claro que existem ciclistas (competitivos) africanos, e alguns serão negros. No ranking africano da União Ciclista Internacional (a federação internacional da modalidade) encontram-se bastantes. O líder de 2008 é um sul-africano com o elucidativo nome de Nicholas White. A sua equipa, Microsoft South Africa, é integralmente constituída por ciclistas brancos.

No ranking europeu, certamente o mais competitivo a nível mundial, o primeiro africano é, em 220°, de novo um sul-africano branco, Robert Hunter.

Esta ausência de ciclistas negros competindo ao mais alto nível reflecte um conjunto de factores, sendo obstáculos socioeconómicos talvez os mais importantes. O menor desenvolvimento económico do continente africano limita os quilómetros de asfalto com qualidade para prática de ciclismo de estrada. O reduzido rendimento per capita e a baixa profissionalização do desporto reduzem a disponibilidade para praticar ciclismo (os atletas precisam de uma fonte de rendimento para comer e pagar as contas, que lhes toma tempo) e dificultam a aquisição das caríssimas bicicletas imprescindíveis para quem quer ser competitivo. As bicicletas que circulam no Tour de France custam milhares de Euros (5.000+), e cada ciclista usa duas ou três: para as etapas em pelotão (uma para etapas planas, outra para etapas de montanha), e outra, tipicamente ainda mais cara, para os contra-relógios.

Benefícios do ciclismo africano

Que importa se existem ou não ciclistas negros competindo ao mais alto nível? Deveria o ciclismo de estrada de alto nível ser uma prioridade para o continente africano? Provavelmente não, há muita coisa por resolver. Mas isso não quer dizer que não possa ser um bom desenvolvimento se alguém se motivar pela causa.

Ciclistas negros com visibilidade internacional constituiriam uma referência para muitos africanos que se identificariam com eles e possivelmente os tomariam como modelos a seguir. Mesmo que quase nenhum chegasse ao ciclismo profissional, ou mesmo ao ciclismo competitivo em geral, milhões de jovens e menos jovens veriam o ciclismo como uma opção para melhorar a qualidade de vida, tanto reduzindo os quilómetros percorridos a pé como praticando ciclismo “por desporto”. Mais pessoas a usar bicicleta no dia a dia aumentaria a disponibilidade para outras actividades (ao reduzir o tempo em longos percursos a pé), melhoraria a saúde (pressupondo que essas pessoas teriam acesso a calorias suficientes para compensar os eventuais gastos extra na bicicleta; de qualquer modo, 1 km de bicicleta é menos caro em calorias que 1 km a pé – exemplos de calculadoras de calorias aqui e aqui), aumentaria a auto-estima da população (mais saudável, mais capaz, melhor humor), e possivelmente atrasaria a adopção de meios de transporte poluentes como as motos, entre outros efeitos benéficos. Claro que também aumentariam os acidentes de bicicleta (mas raramente são graves, na minha experiência – óptimos para endurecer mãos, cotovelos e joelhos!)

Bikes for Africa

Todos estes efeitos podem ser conseguidos sem ciclistas negros no Tour de France. Existem várias iniciativas para levar bicicletas para África e promover o uso desse meio de transporte ecológico e saudável. Experimentem uma busca no google com “bikes for Africa”. Aparecem projectos como Re~Cycle, que recicla bicicletas no Reino Unido, a Australian Goodwill Bicycles Abroad (bicicletas australianas), e, entre outras, esta Bikes por Africa (bicicletas neozelandesas). Entretanto eu já tinha lido sobre outra Bikes for Africa e, mais recentemente, sobre Baisikeli (projecto dinamarquês).

Além de enviarem “lixo” de países mais ricos que se espera que se converta em meios de transporte em África, várias destas iniciativas geram emprego local, ao criar uma indústria africana de recuperação de bicicletas usadas, financiada pela subsequente comercialização.

Não encontrei nenhuma iniciativa portuguesa do mesmo tipo, o que não admira, tendo em conta que a prática do ciclismo é insignificante em Portugal. Num Eurobarómetro realizado em 2007 sobre “Atitudes sobre temas relacionados com a Política de Transportes da UE”, Portugal é o antepenúltimo país da UE27 (à frente de Malta e Luxemburgo) em utilização da bicicleta como principal meio de transporte: 1% da população. [Gostaria de saber quem são! Eu não conheço ninguém!]





The African Cyclist

Se eu pensasse em desenvolver o ciclismo competitivo em África, começaria provavelmente pela bicicleta de montanha, muito mais apropriada para prática em qualquer tipo de terreno (apesar de ser uma disciplina muito menos profissionalizada que o ciclismo de estrada e portanto ser mais improvável produzir atletas que consigam viver do desporto).

Mas há quem acredite e esteja motivadíssimo por levar em frente o projecto do ciclista negro no Tour de France. Em Singapura conheci o Nick (foi ele quem generosamente emprestou a super-bicicleta que me permitiu conquistar o terceiro lugar no triatlo de Singapura há duas semanas).





O Nick é fotógrafo por conta própria e apaixonado do ciclismo. Possui várias bicicletas excelentes, mas não é um super-atleta: pedala por prazer, não compete. Ao observar a ausência de ciclistas negros nas grandes competições internacionais, decidiu fazer alguma coisa. Foi até ao Quénia em busca de ciclistas. E encontrou. Encontrou o Zakayo Nderi e o Samwel Mwangi. Trouxe-os para Singapura no ano passado e, finalmente, durante Agosto, irão até França cronometrar uma subida em Alpe d'Huez. Não menos que a mais famosa “escalada” do Tour de France (leiam os artigos na Wikipedia: em português ou, mais completo, em inglês). É cronometrada oficialmente desde 1994, e portanto constitui óptima referência para testar um atleta com ambições de se bater com os melhores do mundo. O objectivo é que estes ciclistas consigam um tempo comparável com os dos atletas do Tour, para demonstrar que têm as capacidades físicas necessárias. Depois será possível abordar e impressionar potenciais equipas, patrocinadores e parceiros para avançar com o projecto.

Será provável encontrar um ciclista negro no Tour nos próximos anos? Talvez não. Mas o mundo só muda sempre que alguém concretiza um projecto improvável.

Vamos aguardar novidades no site do projecto: http://www.theafricancyclist.com

Boas pedaladas!

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Adrien

“Adrien! Ça va?”

“Cara!! Beleza?!”, responde o Adrien com a usual radiação encandeadora de boas energias.

“Há quanto tempo! Tenho andado pela Europa e não tenho vindo ao escritório. Que é feito? Tudo bem? Quanto te casas?”, pergunto na brincadeira, lembrando-me da namorada.

“Casamos na França dentro de duas semanas! Está tudo marcado!”

“Uau! Parabéns! Vamos combinar um almoço um dia destes?”

“Vamos sim, beleza!”

E nunca mais nos vimos.

No dia seguinte, a vida do Adrien neste mundo terminou abrupta e improvavelmente quando um avião falhou a aterragem no aeroporto de Congonhas, em São Paulo, e chocou com o edifício onde ele trabalhava. Faz hoje um ano.

Na vida e na morte, o Adrien ensinou muita coisa a todos os que tiveram o privilégio de se cruzar com ele. Positivismo inabalável, alegria, vontade de viver, pleno de amizade, generosidade, muita energia e determinação para tantos projectos a realizar... Os comentários partilhados na missa de sétimo dia devem ter-nos deixado a todos com saudável inveja a pensar “Hmm... acho que ninguém diria algo assim sobre mim se eu tivesse morrido... Como é que eu deveria viver a minha vida? O que é que eu gostaria de deixar neste mundo?”

Na memória ficam só coisas boas, e a certeza de que o Adrien está óptimo, onde quer e como quer que esteja.

Cá em baixo ficamos com saudades de te ter por estas bandas. Muitas saudades!



domingo, 13 de julho de 2008

Triatlo de Singapura

Fiquei em terceiro lugar no triatlo de Singapura, no grupo dos 30-34 anos!

Vejam aqui os resultados.





Tal como é típico em outras provas desportivas, a minha velocidade média foi praticamente nula (na definição das aulas de física do secundário), já que a partida e a chegada estavam muito próximas uma da outra (uns 200 metros em 2h32min, dá cerca de 80 metros por hora). Portanto o objectivo de percorrer o mais rapidamente possível 1,5 km a nadar, 40 km a pedalar e 10 km a correr não era certamente deslocar-me o mais longe possível, mas sim... hmmm... ahn... lá estou eu de novo a tentar explicar maluquices desportivas.

Tinha como objectivo melhorar o meu recorde em triatlos desta distância, que era, e ainda é, de 2h27min. Treinei bem, especialmente natação, que já não praticava há alguns anos, e ciclismo+corrida, essencial para sofrer menos na sempre traumática transição entre essas duas actividades (quem já experimentou sabe do que falo!).

Natação

A natação foi boa. Eu sentia-me em boa forma, com um estilo razoavelmente eficiente, a deslizar bem sem gastar demasiadas energias. Sentia-me tão bem que até fiz um aquecimento pré-prova (nas ocasiões anteriores achava que já bastavam os 1,5 km de prova e que não valia a pena cansar-me antes).

Havia partidas diferentes cada 10 minutos (já que uma partida única com cerca de mil atletas seria demasiado confusa), e eu ia partir com metade dos atletas do meu escalão etário. Os meus colegas pareciam algo “tímidos”: poucos fizeram aquecimento, e poucos se chegaram à frente na linha de partida, preferindo ficar para trás, ao contrário do que costumo ver em triatlos.

Foi dada a partida e corri para a água, onde fui um dos primeiros a mergulhar. Senti-me potente e satisfeito de não conseguir ver toucas laranjas (a cor da minha partida) à minha volta. Parecia ir rápido e num dos lugares da frente.

Mas quando completei a primeira volta de 750 metros fiquei muito desiludido com o tempo: 15 minutos! Esperava passar, no máximo, em 13 minutos. Enquanto pensava que já não daria para bater o meu recorde ouvi alguém exclamar: “Vais em primeiro!” E aí começou uma nova prova: em vez de correr pelo recorde absoluto, fiquei motivadíssimo para correr pela posição relativa.

Mantive o ritmo na segunda volta e terminei em 31 minutos, 8 minutos mais lento que em 2003, quando fiz este mesmo triatlo (mas com certeza o percurso de natação não tinha a mesma distância nem as mesmas correntes contra).





Fui o primeiro atleta a sair da água, entre o grupo que partiu comigo, o que não era garantia de ir em primeiro no meu escalão etário, já que tinha havido uma partida anterior com pessoal do mesmo escalão. Entrei na área de transição, onde esperavam as bicicletas e reparei que a minha fila estava ainda cheia de bicicletas, sinal de que ia mesmo num dos primeiros lugares. Adrenalina em cima!

Ciclismo

Os minutos iniciais na bicicleta foram de adaptação ao novo tipo de esforço, mas rapidamente entrei no que me pareceu um bom ritmo (difícil de verificar por falta de um velocímetro). Passei na primeira volta de 10 km no tempo ambicionado, perto de 18 (uns 33 km/h), sentindo um esforço reduzido. Uma bicicleta boa faz maravilhas: depois de ter treinado numa bicicleta de montanha de 50 Euros, uma bicicleta de estrada, avaliada pelo dono que me emprestou em 50 vezes mais, é como um Formula1 para quem costuma andar de Carocha.





Concentrei-me em manter o ritmo mas sem cansar as pernas, que ainda teriam de correr 10 km a boa velocidade (queria ser o mais rápido na corrida, como tinha sido em 2003!).

Reparei que a prova era realmente muito singapurense: um monte de bicicletas carérrimas, de aspecto altamente profissional (a minha não era das melhores!!), montadas por atletas em forma média, mas não tão treinados assim, até algo lentos.

Ao contrário de provas anteriores, em que costumava ser ultrapassado por um monte de gente no ciclismo, vi poucos atletas do meu escalão passar por mim. Portanto continuava numa boa posição!

A boa posição confirmou-se quando voltei a entrar na área de transição, para deixar a bicicleta e iniciar a corrida, e vi só duas bicicletas perto da minha!

Corrida

Iniciei a corrida, determinado a correr forte e ser o mais rápido, fazendo um tempo próximo de 2003: 41min. Até ali tudo tinha sido razoavelmente fácil, mas agora começava o verdadeiro sofrimento - foi-se o sorriso da minha cara.

Ao fim de pouco tempo de corrida comecei a sentir uma forte dor de burro e não consegui ir rápido. Sentia-me muito muito lento. Duas vezes tive de caminhar por alguns segundos para tentar aliviar a dor e pensava “Vou ser passado por toda a gente!”. Mas passei aos 2,5 km num tempo não tão péssimo que me animou a tentar manter o ritmo. E começou a cair uma daquelas chuvas tropicais singapurenses que aliviou o calor.





Nem tudo era mau, mas a dor de burro não passava e pensei como seria bom parar e andar, mas esses pensamentos comodistas não duraram muito tempo: não ia desperdiçar as semanas de treino, nem o esforço na natação e ciclismo, e muito menos desiludir a minha torcida que nesse momento estava a apanhar uma carga de água para me apoiar!

Passei aos 5 km em cerca de 23min, dois ou três minutos mais lento que o meu objectivo inicial, mas já me tinha resignado a aceitar o que viesse. Felizmente, a dor de burro suavizou ao começar a segunda volta de 5 km.

Ia olhando o tempo todo para os números dos atletas que eu passava (bastantes) ou que me passavam (nem tantos), para tentar identificar pessoal do meu escalão. Por volta do km 6 fui passado pelo 4220, claramente meu concorrente directo. Pensei acompanhá-lo mas era impossível aumentar o ritmo. Ao ver os resultados finais, descobri que nesse momento eu tinha perdido o segundo lugar. Mas mesmo que tivesse sabido durante a prova, não havia forças escondidas que me pudessem ter assistido. Estava destruído e só queria acabar a prova!

Mantive o ritmo e finalmente cheguei ao fim: 46min nos 10 km, ainda assim o quarto melhor tempo na corrida no meu escalão.





Balanço final: muito feliz, especialmente com o terceiro lugar no meu escalão, apesar do tempo final de 2h32min ter ficado longe do meu recorde.

Obrigado a quem apoiou, ao vivo e telepaticamente!

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Quem vais comer ao jantar?

Uma das implicações da sociedade especializada e globalizada em que vivemos é que estamos muito longe da origem da grande maioria (totalidade?) dos produtos que usamos ou consumimos. Não só de produtos mais complexos como computadores, frigoríficos ou automóveis, mas também de coisas tão simples como um prato, uma cadeira ou uma cama (quem já tentou produzir algum destes produtos?). Mesmo um eremita de vida simples, que tenha abolido grande parte das necessidades materiais, talvez não produza a sua própria roupa ou algo ainda mais essencial como a sua própria comida.

Quem nos garante que aquilo que nos chega é “moralmente bom” e foi “moralmente bem” feito? Quem define o que é “bom” e o que está “bem”? Para descanso da nossa consciência, delegamos muitas dessas definições (no Estado, na Igreja, nas ONGs, em algum familiar ou amigo de opiniões mais fortes...) e tendemos a esquecer que elas existem. De vez em quando talvez nos interroguemos, mas rapidamente chutamos a dúvida de volta ao canto do cérebro de onde ela se extraviou: “Sim, sim... existem por aí umas leis para garantir que essas coisas funcionam bem”. E, se algo dá errado, claro que a responsabilidade não é nossa: “Pois... eles não definiram bem as regras... o que é que eu poderia fazer?”

Algum problema? Provavelmente sim.

O meu consumo é o motor de uma cadeia montada para satisfazer as minhas “necessidades”. Cada compra é um voto a favor dessa cadeia e de tudo o que a envolve. Cada compra representa a minha assinatura, em papel azul de 25 linhas e reconhecida em cartório, aprovando tudo o que se passa ao longo da cadeia produtiva. Será que consigo ficar de consciência tranquila com as aprovações que faço todos os dias?

Não sou a pessoa mais consciente ou responsável do mundo, mas não consigo evitar algumas perguntas desconfortáveis como:


  • De quem é o couro dos meus sapatos? (com sorte talvez sejam sintéticos)

  • Como vivem os chineses que fabricaram a minha bicicleta de montanha que custou 50 Euros no Carrefour? Como é que a bicicleta pode ser tão barata??

  • Como vivem e morrem os seres vivos que nos servem de alimento?

  • Para onde vai o lixo que deito fora todos os dias?? (e que também faz parte dessa cadeia que eu aprovei)

  • Etc. etc. etc.




Ultimamente tento pensar que só deveria consumir algo que fosse capaz, fisica e moralmente (talvez não tecnicamente), de produzir eu próprio, com as minhas mãos, o meu suor, os meus valores. Parece-me uma boa teoria. Como tantas outras, não é fácil colocá-la em prática – mas isso não é desculpa para ser irresponsável! As duas principais dificuldades são:


  1. Falta de informação – não é fácil saber em detalhe como cada coisa chegou até mim (e onde vai parar depois de passar por mim)

  2. Comodismo – não é fácil abdicar de coisas que aprecio mas que suspeito (ou até sei!) que não são “limpas”, “boas”


Como posso dormir descansado? Ignorante e feliz? Tomo a pílula e volto para a matrix?

zzz
zzz
zzz




Se por acaso ficou por aí alguém que tomou a pílula errada, talvez queira assistir à história das coisas (20 minutos para fazer pensar) ou a este impressionante vídeo sobre algo que eu não seria capaz de fazer com as minhas mãos: [ATENÇÃO: desaconselhável a pessoas mais sensíveis!]




Fonte: PETA.org