Para evitar possíveis reclamações, foi a Sílvia quem reservou alojamento em Hong Kong. E reservou muito bem: no Lucky Hotel, a 25 Euros por noite.
Na véspera de viajar para Hong Kong, recebemos um e-mail um pouco estranho avisando para termos cuidado e não sermos desviados para algum outro hotel. O mais estranho era que o "mapa" enviado não indicava o nome do nosso hotel e dizia-nos para irmos para o 15º andar da torre C, apesar de a morada que tínhamos anotado ao fazer a reserva ser no 12º andar.
Chegámos a Kowloon pelas 23h30. A cidade estava acordadíssima, com gente por todo o lado como se fossem 6 da tarde. Estávamos com fome e decidimos comer alguma coisa antes de procurar o Lucky Hotel. Enquanto procurávamos onde comer, fomos assediados por algumas pessoas (com aparência e sotaque do Sul da Ásia ou Médio Oriente) que nos queriam arranjar alojamento (numa área que não tinha excelente aspecto, já na rua do Lucky Hotel). Um dos mais insistentes, ao ver-se ignorado, despediu-se com a maldição: "Vocês vão voltar! Não vão encontrar alojamento noutro lugar!"
Já passava da meia-noite quando, alimentados e prontos a ir dormir, fomos ver do Lucky Hotel. Rapidamente concluímos que a maldição do chato se ia cumprir: não tínhamos reparado, mas o Lucky Hotel era exactamente no prédio onde ele nos queria alugar um quarto: as Chunking Mansions. (Mas não o vimos e ele não nos deve ter visto, se não com certeza que viria rir-se um pouco de nós.)
Como percebemos surpreendidos na manhã seguinte, durante o dia a entrada do prédio nem tem muito mau aspecto.
Mas à noite, quase todas as lojas fechadas com portões metálicos enferrujados, luzes fracas, espaços quase desertos, um par de mulheres alugando desinibidamente as suas curvas... a entrada e os corredores do prédio ficam com um aspecto bastante... clandestino.
Àquela hora, cansados, nem considerámos a ideia de ir procurar outro lugar. Mas pensámos melhor sobre os diferentes andares que nos tinham indicado e decidimos ir ao 12º, não fosse o e-mail a indicar o 15º uma aldrabice qualquer.
Tendo notado o mau aspecto geral do prédio, ficámos aliviados ao deparar com um 12º andar de aparência bem renovada e limpinha. Tocámos à porta e rapidamente nos mandaram para o 15º andar, dizendo que lá seria a recepção. Talvez não fosse aldrabice, afinal.
Subimos. O rapaz da recepção (da Nigéria ou outro país de gente bem bronzeada) fingiu que tinha quarto para nós, recebeu o pagamento para a primeira noite e chamou um outro rapaz (indiano) para nos levar ao nosso quarto. Só nos começou a cheirar mal quando fomos para o elevador e o nosso novo guia nos disse que íamos mudar para a torre B, 11º andar (já tínhamos reparado que cada andar era um hotel diferente). Ele explicou que aqueles hotéis eram todos do mesmo dono. Piorou quando, no rés-do-chão, ele nos "passou" a um colega, conterrâneo. Começámos a perceber que afinal Hong Kong não tem só chineses: desde que entrámos no prédio não tínhamos visto um único chinês - só indianos e africanos.
Esturro completo quando chegámos ao 11º e vimos um quarto minúsculo, velho e sujo, e com uma casa-de-banho de 1 m2, com duche ali mesmo junto à sanita e ao lavatório. Dissemos que não era o quarto que tínhamos reservado e decidimos voltar à recepção, no 15º andar da torre C.
O "nigeriano" lá admitiu que tinha dado a outra pessoa o quarto que tínhamos reservado, justificando que tínhamos chegado muito tarde (sem lógica nenhuma, pois se não tivéssemos chegado ele poderia em teoria cobrar-nos a primeira noite no cartão de crédito). Enquanto a Sílvia gritava com o homem, eu decidi usar a Internet e procurar alternativas para a noite. Mas a preços razoáveis só apareciam hotéis nas Chunking Mansions. Em vez de alternativas, o nigeriano ofereceu-nos o dinheiro de volta. O indiano acabou por nos propor voltar à torre B... para ver outro quarto horrivelmente semelhante (e semelhantemente horrível) ao primeiro. A Sílvia indignou-se e o indiano levou-nos a um terceiro quarto... Era individual, minúsculo, mas novo e limpo, com bom aspecto geral. À 1h30 da manhã já só queríamos dormir mesmo, mas ainda negociámos um desconto para 18 Euros. Passámos essa noite no "Four Seasons".
Na manhã seguinte voltámos à torre C para encontrar o nigeriano e pedir um quarto no Lucky Hotel ou outro hotel de padrão semelhante. Acabou por nos arranjar um no New Hong Kong Hotel, onde ficámos essa segunda noite por 25 Euros. Este segundo quarto não era muito diferente do anterior, excepto que ao menos tinha uma cama dupla.
Foram os quartos mais minúsculos em que alguma vez fiquei. Menos de 4 m2, incluindo casa-de-banho. Aqui fica uma planta aproximada:
E uma foto tirada de fora do quarto (já que se estivesse dentro ficaria próximo de mais das paredes e não conseguiria fotografar nada):
E uma foto da casa-de-banho:
E a vista da janela:
Durante o dia apreciámos a deplorável fachada do prédio:
E começámos a apreciar os nomes inspirados das dezenas de hotéis e similares em cada uma das torres das Chunking Mansions:
Mas o mais fascinante foi mesmo o efeito causado nos amigos da Sílvia durante o fim-de-semana, incrédulos ao ouvirem que tínhamos ficado nas Chunking Mansions: "Não pode ser! Vocês não estão a ficar ali!" Como costuma acontecer nestas situações, nenhum deles tinha ficado ali alguma vez. E só um par deles tinha entrado no prédio e tinha ficado lá dentro o mínimo tempo possível. Quando lhes perguntei qual seria o hotel mais barato que eles nos recomendariam em Hong Kong, só souberam recomendar um hotel de 125 Euros por noite... 5 vezes mais caro do que o nosso! Claramente aquele pessoal tem um padrão do que é aceitável diferente do meu (felizmente para os hotéis caros).
A Sílvia diz que da próxima vez que for a Hong Kong não vai ficar lá. Eu ficarei com muito gosto: bem localizado, limpo, barato... O prédio poderia ser mais bonito (e provavelmente mais seguro), mas não se pode querer tudo por 25 Euros ou menos!
Ficámos a saber que as Chunking Mansions são super famosas em Hong Kong, têm direito a uma extensa página na wikipedia, e até já foram cenário de um filme: Chunking Express (que temos de tentar ver um dia).
Se quiserem passear pelas Chunking Mansions e não tiverem oportunidade de ir até Hong Kong, experimentem este vídeo:
Apesar de não ter quase nada a ver, estas aventuras lembraram-me umas viagens a Madrid há 15 anos atrás, para participar em provas e estágios de esgrima, em que costumávamos ficar num hostal ali perto da Plaza de España a que demos o nome de "família Adams"...
UAU! Que experiência!
ResponderExcluirIsso sim, é turismo radical!
Confesso que o relato chegou a deixar-me sobressaltado sobre onde é que aquilo ia parar... mas pronto. A culpa era da Sílvia! O que quer que acontecesse, lá estava o aviso no início, seria sempre culpa da Sílvia! Ha, ha, ha. Grande maluco!
Fez-me lembrar um documentário que vi há anos, na RTP2 (Canal2?), mas suponho que seria da - penso que ainda mais impressionante e "assutante" - "Kowloon Wall City": um fenómeno único de densidade, escuridão, pobreza, criminalidade e por aí fora.
Agradeço o pormenor arquitectónico que tiveste a preocupação de nos oferecer: a planta do quarto é elucidativa e... estonteante. Já estive num quarto parecido em Londres mas deveria ter mais um metro quadrado que esse (uma brutalidade de espaço, portanto) e deve ter custado cinco vezes mais...
Já tinha saudades de um relato destes!
ABRAÇO!
Ao avaliar a planta posso garantir que os quartos das Chungking Mansions são à prova de mindinhos partidos (a não ser que o Buli se pusesse a balouçar as pernas, sentado em cima do tampo da mesa).
ResponderExcluirPois é, para nós, dinheiro em alojamento é dinheiro deitado pela janela... quando vou a Sao Paulo hoje em dia fico em hoteis de 50 reais. Nem te digo nem te conto como são os quartos, eheheh
ResponderExcluirRodrigo Gouveia
Estou em crer que me repito mas...pobre Sílvia!
ResponderExcluirDefinitivamente a minha prima preferida, não só por aturar as tuas forretices de boa cara, mas porque me escreveu um postal de Hong Kong (ao contrário de certas pessoas que me escrevem de sítios tão exóticos como Girona).
Bjs da prima Xica