Há umas semanas fui ver “The Cove” (por acaso na véspera de o filme ganhar um Oscar) – um documentário sobre matanças de golfinhos no Japão (trailer no youtube). O filme mistura várias mensagens de uma forma que não me parece a mais eficaz (é mau capturar e matar golfinhos porque são seres inteligentes e sensíveis, é mau comer carne de golfinho porque é tóxica, os japoneses usam esquemas questionáveis para defender as suas práticas de matar baleias e golfinhos...), mas um bom resumo talvez seja: “Gostamos de golfinhos, achamos que são um ser especial, e achamos intolerável a forma como eles são capturados e mortos em Taiji (Japão).”
foto: www.thecovemovie.com
A certa altura os participantes no documentário estão a ouvir gravações de golfinhos e fazem comentários pesarosos do género “Já pensaram...? Estamos a ouvir golfinhos poucas horas antes de serem mortos...” Não pude deixar de partilhar o pesar. E de pensar, igualmente pesaroso, que o mesmo acontece quando passamos ao lado de um aviário, uma pocilga, um estábulo... e ouvimos galinhas carcarejar, porcos grunhir, vacas mugir.
Uma óptima oportunidade para questionar as minhas crenças sobre o ser humano e outros seres, e as implicações sobre como lido com o mundo à minha volta.
Salvem os humanos!
Pensar que é mais importante salvar golfinhos e baleias que outros animais porque são seres particularmente conscientes, inteligentes e sensíveis é um bom exemplo de aplicação flagrante da minha bitola antropocêntrica. Visto que considero o ser humano (mais ou menos) consciente, inteligente e sensível, tendo a acreditar:
- Que consciência, inteligência e sensibilidade são características especiais (possivelmente de forma absoluta)
- Que os seres que as partilham (idealmente no mesmo grau que eu) devem ser protegidos
- E que os que não as apresentam (pelo menos não em grau que eu considere relevante) são menos... valiosos?
- E portanto posso fazer o que quiser com eles
- Ou, se eu for especialmente consciente, inteligente e sensível, talvez ache que os devo tratar (incluindo matar) pelo menos de forma “humana” (E será que um porco quer ser tratado de forma humana?? Não preferirá ele ser tratado de forma suína???)
- Ou seja, quanto mais “humano” for um ser, mais merece ser bem tratado. Esta ideia está geralmente associada à crença de que o ser humano é o culminar da evolução, o ser mais “evoluído” à face da terra (e talvez no universo). Um ser superior.
Será que se aparecer na terra uma nave espacial com seres mais “evoluídos”, que demonstrem consciência, inteligência e sensibilidade super-desenvolvidas, eu vou reconhecer que eles são melhores que os humanos (mais humanos??), e portanto têm todo o direito a usar-nos e matar-nos como lhes aprouver (tal como nós, humanos, fazemos com outros seres)? E nós teremos o dever de os servir? Ou acharei, talvez, que eles são conscientes, inteligentes e sensíveis de uma forma “diferente” da nossa, portanto não humana, e – é claro – “pior”?
Consciência, inteligência e sensibilidade só são especiais porque são características que identificamos em nós próprios. Não são necessariamente especiais para outros seres. E não acredito que sejam especiais em qualquer sentido absoluto.
Infelizmente, esquecemos frequentemente que não existe só aquilo que conhecemos e podemos analisar cientificamente. Existem com certeza muitos outros fenómenos e características que desconhecemos, e por isso nem sequer temos nomes para eles nem podemos falar deles. Se conseguíssemos criar algum tipo de métrica “absoluta” (exercício totalmente teórico, admito) talvez reconhecêssemos algumas dessas características como mais importantes que consciência, inteligência e sensibilidade, ou outras geralmente associadas aos humanos.
Salvem os seres falantes!
Um argumento relativamente frequente e particularmente engraçado em defesa da superioridade humana é a nossa capacidade de falar. E o que é que achamos que os porcos acham da nossa incompetência a grunhir ou a descodificar os grunhidos deles? Que pensarão os morcegos, golfinhos e outros animais da nossa total incapacidade de ecolocalização? Que pensarão da nossa dependência da fala seres capazes de comunicar telepaticamente? (Possivelmente seres humanos; eu acho que até comunico telepaticamente de vez em quando, talvez o equivalente ao que fala um bebé de 1 mês?) Considerar a capacidade de falar especial é o equivalente a eu achar especial ser o único humano que tem um blog chamado bulicenas – não tem nada de especial para além do facto de ser uma característica minha.
Salvem os amigos do homem!
Nestas reflexões, não pude deixar de recordar uma notícia que li há meses, sobre dois restaurantes em São Paulo (Brasil), fechados por servirem carne de cão.
Que raio de notícia é essa? O que é que um cão tem de especial que uma galinha, um porco ou uma vaca não tem? Notícia mais interessante seria talvez “Restaurante fechado por servir carne”? (Sendo justo, na notícia de São Paulo, além da proibição discriminatória contra o consumo de carne canina, parecia haver legítimas preocupações de higiene alimentar.)
Especismo (preferência por uma espécie em detrimento de outras) não me parece se não uma variante – igualmente irracional e questionável – de racismo. Curiosamente, muitas pessoas condenam o racismo entre humanos, mas não têm sequer consciência de que exista especismo, e muito menos de que seja algo questionável.
Salvem os animais!
A generalização para “salvem os animais” (não só as baleias, golfinhos, cães, gatos e outros animais favoritos) parece-me positiva, não deixando de ser muito provavelmente uma forma de antropocentrismo: os animais são preferíveis aos não animais... porque são mais parecidos com o ser humano.
É interessante e até divertido (e também desapontador) como os argumentos da PETA (People for the Ethical Treatment of Animals – organização de defesa dos direitos animais) para proteger os animais são tão focados nas características “humanas” dos animais (p.ex., galinhas, porcos, peixes, vacas, perus, patos e gansos): são curiosos, inteligentes, sociáveis, amigáveis, leais, afectivos, sensíveis, solidários, monógamos, têm personalidade, memória, capacidade de resolver problemas... (Ver também “10 factos fascinantes sobre porcos”.)
Aquilo que é parecido connosco deve ser protegido. O que é diferente não importa? Parece um critério bem objectivo e racional... ou talvez não?
Devemos tratar os outros (humanos ou não) como
a) nós queremos ser tratados, ou
b) como eles querem ser tratados?
Eu voto “b” (o que não quer dizer que eu seja particularmente habilidoso a agir de acordo com essa convicção – sempre muito a melhorar!!). Mas, olhando para o mundo, diria que já não seria mau se os tratássemos como nós queremos ser tratados.
A PETA tem bons vídeos (p.ex., este) para nos fazer pensar se queremos ou não pactuar com o tratamento que damos aos animais. Não me parece válida a desculpa de que não somos nós que maltratamos os animais – só os compramos no supermercado, limpinhos e embaladinhos! Então se eu pagar a um assassino para fazer desaparecer do mapa alguém de quem não gosto não deve haver problema nenhum, certo?
Salvem as baratas!
Confesso que não gosto de baratas. Em algum momento da minha vida programei a minha cabeça para acreditar que elas são nojentas, perigosas para a saúde e merecem morrer, e ainda não consegui desprogramar-me totalmente (na mesma ordem de ideias acho que poderia mais facilmente convencer-me de que muitos humanos merecem morrer... e assim de repente não me parece bem). Elas abundam em Singapura. Voam bastante e facilmente entram pela janela do 22º andar. Às vezes tento expulsá-las de casa sem as matar (há dias consegui pela primeira vez pegar numa com a mão e atirá-la pela janela!), mas geralmente perco a paciência e acabo por estonteá-las (muitas vezes definitivamente...) com uma chinelada. Talvez um dia destes eu faça um documentário “Salvem as Baratas” para me redimir?
Salvem os seres vivos!
Então e se generalizarmos ainda mais para “salvem os seres vivos”? Vamos incluir também as plantas, fungos, bactérias... e outros seres vivos (peço desculpa mas não me lembro das classificações discutidas nas aulas de Ciências da Natureza há demasiados anos atrás). Bastante mais abrangente, não? Excelente!
Não deixa de ser provavelmente algo antropocêntrico: decidi estender a protecção a outros seres vivos... porque sendo eu um ser vivo tendo a acreditar que um ser vivo é melhor, mais importante, superior à matéria inerte (ou à não-matéria!).
Será necessariamente assim? Claro que não. Mas concordo que parece mais fácil adivinhar como outro ser vivo “quer” ser tratado (pelo menos é provável que queira continuar vivo?), do que como um objecto inerte ou algo imaterial “quer” ser tratado. Será que um calhau se importa se for despedaçado? Ou se passar a formar parte de um prédio? Não faço a mínima ideia. Nem faço ideia de como poderia investigar.
Então talvez “salvem os seres vivos” não seja um mau slogan... Pelo menos parece-me bem melhor do que o simples e míope “salvem os humanos”, que por sua vez já é muito melhor do que “salvem a minha família”, e infinitamente melhor do que “salvem o Buli”.
Origens das crenças
Não sei se estas ideias antropocêntricas são “naturais”. Parece haver algo de natural e espontâneo na tendência de ver o mundo centrado no meu umbigo, de acordo com as minhas bitolas. Mas natural não significa necessariamente bom. Nem justificável.
Também me parece que o contexto em que vivemos, a cultura, as mensagens que transmitimos uns aos outros, têm um papel fundamental na formação das nossas crenças.
Por exemplo [desculpem as mentes mais impressionáveis – fiquem à vontade para saltar o resto deste parágrafo], acredito fortemente que se eu tivesse crescido numa sociedade em que fosse habitual (e portanto “normal” e “natural”) as pessoas alimentarem-se de outras pessoas, se a minha mãe me tivesse servido desde tenra idade (quando eu mal percebia quem/o que eu era e o que era o mundo) coxinhas e bracinhos tenrinhos de outros meninos (a la Delicatessen - filme altamente recomendável!)... eu teria achado durante muito tempo normal, natural, aceitável, inquestionável, provavelmente até saudável e recomendável, comer carne humana. A minha mãe é boa pessoa e claro que não fez uma coisa dessas. Mas deu-me carne de galinha, de porco, de vaca, de cabrito, de coelho, etc. E eu cresci a achar natural comer tudo isso. E quando percebi como viviam e morriam as galinhas, porcos, vacas, cabras, coelhos, etc., acredito que não me tenha parecido excelente, mas rapidamente justifiquei que era necessário, para que nós, humanos, nos pudéssemos alimentar. E consegui durante bastante tempo deixar essa informação num canto do cérebro (“Não toques aí que isso desmorona tudo!!”).
O mais chato é que as crenças parecem formar-se cedo na nossa vida, e quando chegamos a uma idade mais consciente arriscamos nem perceber que elas existem. Simplesmente aceitamo-las como a verdade.
Na cultura judaico-cristã em que fui criado vejo muitos vestígios do conceito de “povo escolhido” que não me parecem saudáveis. Acho que consegui desprogramar grande parte, mas certamente não 100%. É um trabalho constante de me tornar consciente daquilo em que acredito. A ideia bíblica de que deus escolheu o povo judeu tende a ser hoje interpretada talvez mais como “deus escolheu o ser humano” (ainda muito míope, mas ao menos na direcção certa). Mas na maioria das culturas religiosas parece ainda muito difundida – até entre religiosos – a ideia mais perigosa (porque pode levar a comportamentos geradores de infelicidade) de que “deus escolheu o ser humano que professa a minha religião”. Deus, cá para mim, não escolhe ninguém. Escolher é algo que os humanos (e outros seres vivos) fazem. Ao dizer que deus escolhe estou, como de costume, a humanizá-lo.
E então?
Esta bulicena é afinal um apelo a quê? Como todas as bulicenas, primeiro que tudo é uma forma de eu tentar organizar algumas ideias para mim próprio. Mas também pode ser um apelo a que sejamos conscientes (1) daquilo em que acreditamos, de forma explícita ou não, (2) das acções que decidimos tomar devido às nossas crenças, e (3) das consequências dessas acções. É um apelo à responsabilização.
Será um apelo ao vegetarianismo? Vejo muitas razões para ser vegetariano (económicas, ecológicas, éticas, de saúde, bem-estar, compaixão, ... bom tema para umas bulisofias) e poucas para não o ser (preguiça?). Praticamente não como carne há três anos e acho que como (pouco) peixe mais por preguiça de procurar alternativas quando não estão tão à mão (e concordo que preguiça é uma terrivelmente vergonhosa explicação para não viver da forma que me parecer melhor). As razões iniciais para não comer carne foram de bem-estar (a carne provoca facilmente digestão lenta e barriga pesada!), após uma overdose no sul do Brasil. Em algum momento comecei a pensar na questão ética que motiva tantos vegetarianos... e concluí que não me parecia bem não ser capaz de matar uma galinha, porco ou vaca mas aceitar pagar a alguém para fazer o trabalho sujo por mim. Como já comentado, não muito diferente de pagar a alguém para matar uma pessoa que não me dá jeito que continue viva.
Esperando que me ajude a ser melhor e mais feliz e a espalhar mais felicidade, escolho acreditar que:
- É bom viver em maior harmonia, em equilíbrio com o mundo
- Não matar é melhor, mais harmonioso, equilibrado do que matar
- Maltratar pode ser pior do que matar
- Matar um ser vivo é matar, independentemente do ser
- Matar indirectamente não é diferente de matar directamente (é só mais cobarde e/ou conveniente)
- Matar indirectamente não inclui apenas que alguém mate por mim mas também todas as mortes para as quais a minha existência contribui (p.ex., morte de árvores cortadas para construir o prédio onde vivo)
- Matar em conjunto ou cumplicidade com outros continua a ser matar
Como é que estas crenças deveriam afectar as minhas acções?
- É minha responsabilidade investigar o que é feito por minha causa (p.ex, seres que são maltratados ou mortos para serem produzidos bens ou serviços que eu utilizo) e fazer escolhas que minimizam o meu mau impacte no mundo. Não estou a ponderar o suicídio (rápida solução para evitar que a minha existência contribua para mais mortes – seria a última... esperando que o impacte do funeral não fosse pesado), nem a conversão ao jainismo (que não deixa de poder servir de excelente inspiração), nem deixar de viver porque não sei quanto mal posso provocar. Mas acredito que posso procurar viver sempre de forma mais responsável.
- Não devo maltratar ou matar desnecessariamente (tremendo discernimento: o que é “necessário”??), por isso devo estar atento não só às minhas acções conscientes mas também às opções imponderadas e a reflexos estúpidos como pisar um insecto, matar uma barata, etc.
- Talvez as ideias veganistas sejam uma boa referência? Algo a analisar.
Algumas perguntas mais difíceis:
- Quão maltratadas são as vacas que produzem o leite que bebo, as galinhas que produzem os ovos que como? Deveria parar de consumir esses produtos para não incentivar tais indústrias? Suspeito que sim...
- É justo, bom, aceitável matar em auto-defesa ou em defesa de outros seres? Que seres e em que situações? O mosquito que talvez me pique ou a outras pessoas e transmita uma doença grave como malária ou dengue? O soldado que vai carregar no botão para lançar a bomba nuclear? O líder que promove ideias e medidas xenófobas, racistas, especistas, poluidoras, belicistas, etc. – geradoras de desequilíbrio? Toda a espécie humana, que, com o seu ímpeto monopolizador do mundo e respectivos recursos, raramente parece contribuir para um mundo equilibrado?
Hmm... acho que vou mandar algumas destas questões para um canto do cérebro antes que desmorone tudo!