“A última vez que você veio aos EUA foi em Dezembro. Como é que eu sei que você não vive aqui?”, perguntou o agente da imigração no aeroporto de Newark. “É uma boa pergunta”, respondi.
Acabou por enviar-me para interrogatório mais detalhado na sala dos suspeitos de crimes contra a humanidade (ou pelo menos contra a “estado-unidensidade”). Eu já tinha preenchido o impresso verde, declarando por minha honra não ser culpado de diversos actos reprováveis (sinceramente, nem li as perguntas, e não me envergonho por isso: tal como qualquer terrorista, já sei que as perguntas são ridículas e que a resposta correcta é “Não”), que mais queriam que eu dissesse?
O agente que me entrevistou a seguir tinha um apelido de origem lusa (um apelido incomum, só recordo que terminava em “eira”). Não achei apropriado comentar, já que tratávamos ali de assuntos muito sérios.
Discutimos quase toda a minha vida com razoável honestidade: o que faço (“consultor freelance” pareceu-me mais apropriado que “reformado”), se tenho um cartão de visita ("não"), até quando vou ficar, como posso ter tanto tempo livre para viajar até aos EUA, se faço tenção de trabalhar nos EUA, o que fazia antes, quanto ganho (até pensei que seria difícil não mentir aqui, mas felizmente ainda ganhei uns salários em 2008, além de alguns juros sobre as minhas poupanças), há quanto tempo estou com a minha namorada, onde nos conhecemos, o que ela faz nos EUA, os telefones dela (verifiquei que ele não tomou nota, não fosse ficar interessado em conhecê-la!), quanto dinheiro trazia comigo, cartões de crédito... se eu corria maratonas (ao detectar um artigo que eu estava a ler sobre os efeitos fisiológicos da maratona)... Vá lá, desta vez não me perguntaram que línguas falava (“árabe, pois claro”) nem se tinha treino militar. Pelo meio interrompeu a entrevista e foi falar com alguém (talvez comentar a minha fotografia “taliban”, com barba de vários meses, no passaporte, e/ou o registo feito em entradas anteriores de eu ter passado pelo Afeganistão em 2003?). A certa altura parecia que tinha esgotado as perguntas e que continuava em dúvida sobre o que fazer comigo.
Curioso, não? Os Estados Unidos da América foram fundados por imigrantes que vieram principalmente da Europa para “colonizar” o “Novo Continente”, esquecendo que o continente só era novo para eles e que já cá havia gente antes. Não muito diferente do que os portugueses fizeram no Brasil e outros lugares, os espanhóis no resto da América Latina, os “australianos” naquela enorme ilha que hoje fecham a tantas chaves... Basta reparar na cor da pele das pessoas em muitos destes lugares para suspeitar de genocídio. Há uns anos sentíamo-nos todos com direito a fazer nossos territórios alheios. Em 1494, portugueses e espanhóis chegaram a dividir o mundo entre eles! Uns com maior sucesso que outros, apoderámo-nos de imensos recursos que agora não queremos partilhar. Hoje abundam as fronteiras fechadas, xenofobismo explícito e implícito, consciente e inconsciente.
O que está em causa não é tanto a integridade nacional (seja isso o que for) ou a segurança pública, mas muito mais a nossa segurança material – a garantia de que vamos manter os “nossos” bens, a “nossa” riqueza. Se nos ajuda a ficar mais ricos, o comércio livre é bom. Se nos obriga a partilhar o que temos, migração livre é má. Não formei uma opinião forte a favor da migração livre [a wikipedia tem um artigo com boas ligações sobre o tema], mas como nómada (certamente muito privilegiado em relação a outros exemplos, como refugiados internacionais tentando escapar de genocídios) não posso deixar de sentir grande simpatia pelo conceito e pensar que certos proteccionismos não parecem muito... humanos. Ou justos.
É verdade que a Declaração Universal dos Direitos do Homem não é famosa por ser seguida com muito rigor, mas, enquanto o artigo 13º estabelece apenas o direito à liberdade de movimentos e residência dentro das fronteiras de cada estado, já o artigo 15º menciona o direito de mudar de nacionalidade (não deixando muito claro até onde deveria ir esse direito).
Pelos vistos ainda não foi inventado um leitor de pensamentos, pois não foi desta que fui considerado persona non grata nos EUA. Com cara de "que se lixe", o agente lá decidiu carimbar os meus papéis enquanto dizia "One important question...". Que mais poderia querer saber?? Como eu já o tinha visto carimbar a papelada, nem cheguei a sentir palpitações nesse momento, pensando que inevitavelmente ele me deixaria entrar. E muda de inglês para português: "De que clube você é?" Sinceramente, suspeito que ele me concedeu entrada no país indeciso, dando o benefício da dúvida por termos algo em comum (além de cabeça, tronco, membros, olhos, cor do cabelo e da pele, pelos vistos a língua e algum pedaço de “portugalismo”). Respondi com sinceridade e um sorriso "Não ligo a futebol". A julgar pelas perguntas no impresso de imigração, quem sabe se ele não me negaria entrada caso eu fosse sportinguista e ele benfiquista?
[Se deixarem de ser publicadas novas bulicenas, pode ser que eu tenha sido entretanto capturado pelos senhores da Segurança da Pátria, do Escritório Federal de Investigação, da Agência Central de Inteligência, ou de alguma outra organização mais obscura cujo nome nem sequer o presidente conhece. Com sorte, irei parar ao centro de torturas de Guantánamo e de lá recambiado para Portugal quando o decidirem fechar.]