domingo, 24 de maio de 2009

Capitalismo amoral

Na semana passada li o artigo “How Casinos Can Find and Target Their Favorite Customers: The Biggest Losers” (“Como podem os casinos identificar e mirar os seus clientes favoritos: os maiores perdedores”) na Knowledge@Wharton, publicação de Wharton (uma das mais conceituadas escolas de negócios americanas, repetidamente no top dos rankings de MBAs, que conta entre os seus alumni gente tão ilustre como Warren Buffet, Donald Trump ou eu próprio). O artigo descreve um estudo de dois professores de marketing de Wharton e um colega da New York University que criaram um modelo que identifica os frequentadores de casinos que mais dinheiro perdem, permitindo definir estratégias de marketing para aumentar as perdas desses maiores perdedores e maximizar o lucro do casino. Espectacular, não? A conclusão destes senhores professores é que é claramente possível identificar esses (literal e figuradamente) “losers”, e perguntam-se porque é que os casinos não estão já a utilizar essas ferramentas.

Fiquei pasmado ao ler o artigo. Não podia acreditar que fosse mesmo esse o tema do estudo. Tal como a ciência, o capitalismo não é bom nem mau por natureza – é amoral. É simplesmente um sistema económico, um esquema possível para lidar com “riqueza”. A sua aplicação, aquilo que cada um de nós faz com ele, é que pode ser moral ou imoral. A moralidade acontece ao nível do indivíduo, do nosso comportamento, das nossas decisões. E o que estes senhores fizeram parece-me profundamente imoral: como ajudar agentes “do mal” (usando uma expressão bushiana) a aproveitarem-se da desgraça alheia para acumular mais riqueza suja. É discutível se um estudo académico pode de facto ser imoral, já que na verdade não implica necessariamente acção e portanto não tem impacto directo em ninguém. Ok, talvez seja um estudo tão amoral como o desenvolvimento teórico da bomba atómica, ou de armamento em geral. Estudos dos quais nada de bom pode vir e que permitem fazer o mal parecem-me bastante imorais. Se uma das mais prestigiadas escolas de negócios na economia mais “desenvolvida” do mundo publica sem qualquer questionamento um estudo destes, fica fácil perceber onde é que os grandes homens de negócios não aprenderam como se deveriam comportar.



Casino Lisboa, Macau



Capitalismo amoral

André Comte-Sponville, no seu livro “Le capitalisme est-il moral ?” (que eu não li, li esta interessante entrevista e mais algumas coisas que o Google me trouxe) propõe um conjunto de “ordens universais” que parecem fazer algum sentido para analisar o mundo:

  • A ordem técnico-científica (o que é possível vs. o que não é possível) – onde se inclui o capitalismo

  • A ordem político-jurídica (o legal vs. o ilegal)

  • A ordem moral (o bom vs. o mau)

  • A ordem ética ou do amor

  • A ordem do divino (o autor é ateu, portanto para ele esta quinta ordem não existe)


Se bem entendo, o autor sugere que cada ordem deve ser controlada pela ordem que se lhe segue: o que é possível tecnicamente (p.ex., escravidão) controlado pelas leis (p.ex., direitos humanos), por sua vez controladas pela moral (o que é legal não é necessariamente bom), por sua vez controlada pelo amor, por sua vez controlado pelo divino (tenho de ler o livro para perceber tudo isto melhor). O capitalismo, estando na primeira ordem, é amoral, só diz respeito ao que é possível ou não fazer, sem preocupações legais, morais, éticas ou espirituais. Daí serem necessárias as outras ordens para lhe colocarem ordem e assegurarem uma boa aplicação do que o capitalismo permite.

O curioso é que, talvez exactamente por o capitalismo ser amoral, para muita gente torna-se quase um sinónimo de legal (no sentido corrente e no sentido brasileiro), bom, sinal de amor, talvez até de vontade divina. Acumular riqueza! Este fim absoluto justifica quaisquer meios. Porque é assim que o mundo funciona, sejamos realistas. Para quê questionar?


Casinos imorais

Tudo a ver com o artigo de Wharton e com enriquecer por quaisquer meios, uma das grandes questões da nação singapurense nos últimos anos tem sido: “Casinos: sim ou não?“ O jogo legal em Singapura estava até há pouco tempo limitado às lotarias e afins geridas pelo Estado. O debate sobre os casinos pesou os benefícios económicos, ao atrair turismo e gerar emprego, diversificando a economia do país (tradicionalmente dependente da exportação de produtos de tecnologia), contra os problemas sociais que poderão crescer (vício do jogo, crime organizado, prostituição, ...). Ao bom estilo autoritário singapurense, o Governo acabou por decidir (“we had no choice”, declarou o primeiro-ministro), não sem polémica, permitir a construção de dois mega-casinos, a estrear este ano. IR (Integrated Resort) é o eufemismo, análogo a IVR (Interrupção Voluntária da Gravidez), pelo que já são conhecidos os dois empreendimentos da perdição.

A decisão do Governo de Singapura revela uma razoável dose de cinismo: fazer crescer a economia nacional à custa da desgraça de quem perde dinheiro no jogo, minimizando os problemas sociais internos através de obstáculos ao vício singapurense: nacionais e residentes pagarão uma taxa de S$100 (50 Euros) para entrar nos casinos, e existe desde 2005 um National Council on Problem Gambling que, entre outros poderes e iniciativas, tem autoridade para impedir o acesso de singapurenses com problemas de jogo aos casinos, a pedido dos familiares. Se forem chineses, malaios, indianos, tailandeses, indonésios ou outros “biggest losers”, não há problema – venham lá essas fichas!

(Recomendo este resumo para quem quiser saber mais sobre esta nova “indústria” singapurense.)

Os casinos parecem-me uma aplicação claramente imoral do capitalismo. Basta entrar num para perceber que não se passa lá nada de bom. Acho que deveriam ser ilegais ou pelo menos muito mais regulamentados. Se há um país em que a regulamentação pode ser bem pensada e bem aplicada é Singapura – estou curioso de ver onde isto vai dar.

Visitei o site de um dos novos casinos, Resorts World at Sentosa, e não pude deixar de me impressionar ainda mais com a hipocrisia desta “indústria”, patente nestas duas declarações na área de “responsabilidade social corporativa” do site:

  • "Resorts World at Sentosa is in the business of bringing families closer and delighting our customers. We pride ourselves in developing a successful business built on ethical values, integrity and best practices."

  • "Resorts World at Sentosa is committed towards promoting responsible gaming and will not exploit guests who have a gambling problem."


Perdão??!


Consultoria imoral

Na minha vida de consultor tenho tido a feliz oportunidade de trabalhar com várias empresas com princípios e valores decentes. Também encontro de vez em quando tristes exemplos de óbvia aplicação imoral do capitalismo amoral. Uns colegas meus estavam a trabalhar para um banco, ajudando a rentabilizar a área de crédito ao consumo. Através de uma pesquisa descobriram que os clientes de baixos rendimentos não entendiam o significado dos “juros” – avaliavam o custo do crédito simplesmente pelo valor da mensalidade a pagar. Qual foi a recomendação? “Temos de dar formação financeira aos clientes!” Obviamente que não... Essa seria a recomendação moral. A verdadeira recomendação foi: “Se eles não sabem o que são juros, então vamos aumentar brutalmente os juros, estender os prazos de pagamento, e manter as mensalidades baixas!” E assim se fez, com fantásticos resultados para o banco e efusivas felicitações aos consultores – mais um case study de sucesso! E os pobres (em todos os sentidos) clientes do banco? Provavelmente continuam a pagar a televisão que já lhes custou várias televisões nos últimos anos.


Bancos imorais

Em São Paulo conheci uma vítima da sua própria ingenuidade e de um banco sanguinário, talvez aconselhado por igualmente ou ainda mais sanguinários consultores, o Itaú (que por acaso é onde tenho as minhas poupanças... certamente usadas para práticas louváveis como a que vou descrever... o que me faz pensar sobre o que deveria fazer ao dinheiro... colocá-lo debaixo do colchão? Não é fácil ser responsável...) Ao levantar dinheiro no caixa automático, apareceu a esta rapariga uma mensagem do tipo: “O Itaú oferece-lhe 1000 reais! [uns 380 Euros na altura] Quer aceitar?” (provavelmente a mensagem era mais próxima de “Você tem um crédito pré-aprovado de 1000 reais!”, talvez com alguma menção a juros e prazo de pagamento, mas é fácil ler outras coisas quando a pessoa é muito optimista ou ingénua). Ela, pensando que o Itaú “estava sendo legal” para ela, claro que aceitou! Acontece que ela já tinha créditos acumulados de 2000 reais, portanto passou a dever 3000 reais ao banco, pagando juros de 6%... ao mês (cerca de 100% ao ano!). Se os créditos fossem todos a 36 meses, ela estava a pagar ao banco uns 200 reais por mês. Ao fim de 36 meses teria pago mais de 7000 reais... para usufruir dos seus 3000 reais hoje. Se tivermos em conta que ela ganhava talvez 500 reais por mês... nem dá para imaginar como é que ela conseguiria pagar despesas básicas mais os créditos. Como é possível que o Itaú, onde ela tinha todos os créditos anteriores e onde recebia o salário (portanto não havia possível desculpa de falta de informação), pudesse oferecer mais crédito, quando ela já devia quatro meses completos de salário??! Ainda por cima através de um canal impessoal (o caixa automático), que impossibilitaria qualquer esclarecimento ou verificação de que a cliente sabia em que é que se estava a meter!!

Curiosamente, o Itaú tem agora no seu site uma secção chamada “Uso Consciente do Dinheiro”, com conteúdos de sensibilização para a boa gestão das finanças pessoais: “Mais do que oferecer produtos financeiros, o Itaú orienta você a usar o dinheiro de maneira consciente”. Hipocrisia? Sinceramente e com muita pena, acho que sim. Os conteúdos do site parecem-me muito bons, mas quem tem acesso à Internet? Quem ganha mais e já tem melhor educação financeira, não quem ganha o salário mínimo ou pouco mais e está sujeito a este créditos absurdamente usurários. Além disso, se o Itaú não mudar os incentivos das suas tropas de inpingimento de crédito (o pessoal das agências bancárias e de crédito ao consumo, mas também o pessoal “virtual” dos caixas automáticos e correios promocionais), por muita campanha que faça, vai continuar a fazer mal ao mundo. E eu, se não tirar o dinheiro do banco, vou continuar a contribuir para tudo isto.


Marketing imoral

Este trecho da reportagem canadiana “The Corporation” (disponível integralmente para download, espero que legal, aqui) mostra outro chocante exemplo de amoralidade nauseantemente imoral. Vale a pena ver pelo menos os 20 segundos a partir de 4'55”, em que Lucy Hughes, responsável de um estudo sobre como pôr as crianças a chatear os pais para comprarem coisas, revela os seus sólidos princípios:

"Someone asked me: 'Lucy, is that ethical? You're essentially manipulating these children' Well, yeah, is it ethical? I don't know. But our role at Initiative is to move products. And if we know you move products with a certain creative execution placed in a certain type of media vehicle then we've done our job."


Será que esta senhora não merecia ser... sei lá.. presa? Ou pelo menos forçada a um curso vitalício de ética, de consciência? Ou condenada a passar o resto dos seus dias a assistir aos anúncios televisivos dos seus clientes?


e-business imoral

A internet tem proporcionado inúmeras novas oportunidades de negócio. É cada vez mais fácil e custa cada vez menos criar um negócio online com boa aparência. Infelizmente, é tão fácil e barato criar negócios online bem-intencionados como mal-intencionados. Quando passei por Portugal nos últimos meses chamaram-me a atenção uns anúncios que teimavam em interpelar-me nas minhas deambulações internéticas. Acabei por clicar para ver de que se tratava.



Começavam por uma pergunta parva ou um desafio para chamar a atenção (geralmente associado a gráficos vistosos, de boa estética): “Estás a ser explorado?” “Quanto tempo te resta para viver?” “Será que o teu QI é maior que o da Madonna?“ “Testa os teus conhecimentos sobre o Sporting!” Fui respondendo, para ver onde aquilo ia dar, até que me é pedido o meu número de telemóvel, para me enviarem os resultados do teste. Hmmm... qual será o truque? Só então, e não imediatamente, reparo nas letras miudinhas, no fundo da página, colocadas de forma a exigir um scroll-down para aparecerem:

“Fica a saber quanto devias ganhar e desafia os teus amigos a fazerem o mesmo. Deixa de ser explorado e confronta o teu chefe com o resultado. Subscrição de 4€ semanais, automaticamente renovada a cada semana. Cancelar? Envia um sms com o código sair para o 3456. Alguma dúvida podes sempre ligar para o 707 30 3456 ou enviar um e-mail p/ ptclientes@movilisto.com. Serviço disponível para > 16 anos. iTouch Movilisto Portugal. Rua Vítor Cordón n.º37 6.ºEsq. 1200-482 Lisboa.”


Entretanto visitei de novo os sites e o texto das letras miudinhas aumentou consideravelmente. Provavelmente para melhor “cumprir a lei”. Certamente, além de gestores competentes e designers inspirados, há bons advogados a colaborar neste merditório negócio. Bem alinhado com recentes declarações do Bastonário da Ordem dos Advogados. Estou a ficar muito enjoado...

Que forma asquerosa de fazer dinheiro fácil, explorando a distracção e ingenuidade dos internautas! Imaginem a quantidade de putos que cai na esparrela, para não falar de adultos distraídos! Pior fiquei quando comentei sobre estes anúncios com um amigo e ele me disse que conhecia alguém que dirigia esta empresa (ou uma empresa semelhante) – um tipo assim como nós, com boa formação académica, uma carreira em gestão de empresas... este era só o seu projecto actual, como outro qualquer. Explicou-me que a estratégia deles era “norte-sul”: lançavam o negócio em países do norte, onde rapidamente eram criadas leis que tornavam a prática ilegal e então passavam para países mais a sul, onde as leis estivessem menos avançadas. Estavam agora na fase sul da Europa, onde esperavam que a prática fosse proibida em breve e por isso começavam a avançar mais para sul, para grandes países como China, Índia, Brasil... Bonito, ein? Estes meninos devem estar muito orgulhosos dos seus feitos. Só dá vontade de lhes vomitar em cima (leitores mais susceptíveis, desculpem a imagem eventualmente desagradável).

(Não coloco aqui links para os sites para não contribuir para o negócio. Se alguém tiver especial curiosidade em visitá-los, veja o endereço na imagem ou escreva-me a perguntar. Se alguém se tiver inscrito num destes esquemas e estiver com dificuldades em sair, veja este link que explica como sair de vários destes negócios sujos.)


Esperança

Enfim... Haverá esperança para a humanidade? O modelo proposto pelo André Comte-Sponville dá boas pistas. O capitalismo amoral (assim como a ciência e companhia) precisa de ser regulado pelo Estado (p.ex., proibindo ou regulando “indústrias” destrutivas como as drogas, casinos, etc., proibindo práticas sanguinárias como a oferta de crédito por caixa automático, ou a oferta de crédito ao consumo em geral), que por sua vez precisa de ser regulado pela nossa responsabilidade individual de defender valores íntegros e fazer o bem, distribuindo amor, vivendo em equilíbrio com o mundo, com a natureza, com os outros, com Deus. Se criarmos uma massa crítica de pessoas que querem viver a sério, conscientes e responsáveis, acredito que se gerará um ciclo virtuoso, uma bola de neve que atrai cada vez mais pessoas para construírem um mundo melhor. Há esperança.

E fico a aguardar ansiosamente as próximas edições da Knowledge@Wharton, onde certamente se tratarão outros temas tremendamente críticos para criar um mundo melhor, como por exemplo:

  • How Drug Dealers Can Best Recruit High School Customers: Location, Location, Location

  • Double Hours, Halve Salaries: Solution for the Crisis without Job Cuts

  • Key Success Factors for Pimps in Latin America: Power, Network and Location

  • Save The Arms Industry: Boosting Demand by Catalyzing Conflict in Sub-Saharan Africa

  • The 10 Best Barely Legal Tricks to Avoid Taxes: Advice from S&P 500 CFOs

  • Make Money By Collecting Money: The Bernard Madoff Way



Concordas? Discordas? Nem por isso? Infelizmente, há tantos outros exemplos de aplicações imorais do capitalismo amoral... Convido-te a partilhar os teus nos comentários. E também ideias para moralizar as práticas capitalistas!

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