sábado, 30 de maio de 2009

Genealogia igualitária

Nós, iberoamericanos, somos internacionalmente famosos pelos nossos nomes compridos, carregados de apelidos dos nossos pais, avós, bisavós e por aí fora. Como o de Pablo Picasso, para um exemplo famoso: Pablo Diego José Francisco de Paula Juan Nepomuceno María de los Remedios Cipriano de la Santísima Trinidad Mártir Patricio Clito Ruiz y Picasso. Imaginem a tortura do pobre Pablito, quando na escola lhe pediam para preencher múltiplas fichas com o nome completo! Talvez ele tenha criado logo ali a assinatura curtinha?



Muito mais grave que um nome comprido parece-me a tradição machista com que os apelidos se vão transferindo de homem para mulher e de geração em geração:

  • A esposa geralmente adopta o apelido do marido (e raramente isso é recíproco, acho que só conheço um caso)

  • O apelido paterno do pai passa aos filhos e filhas como “principal”, que depois é passado aos filhos dos filhos, e aos filhos dos filhos dos filhos... mas já não aos filhos dos filhos das filhas


Porque não acabar com estas duas discriminações? A minha proposta:

  • A esposa adopta o apelido paterno do esposo como “apelido secundário”

  • O esposo adopta o apelido materno da esposa como “apelido secundário”

  • Os filhos herdam o apelido do pai como “principal”

  • As filhas herdam o apelido da mãe como “principal”


Hmmm... Assim estabelece-se uma linha genealógica patriarcal e uma outra linha matriarcal... Talvez fosse preferível transmitir os apelidos de forma cruzada, perdendo-se qualquer linha genealógica sexista, não? Muito melhor assim:

  • Os filhos herdam o apelido da mãe como “principal”

  • As filhas herdam o apelido do pai como “principal”


Exemplo prático:
Maria Silva Ribeiro (Silva é o apelido do pai, Ribeiro apelido da mãe)
casa com
Manuel Pereira Fonseca (Pereira é o apelido da mãe, Fonseca apelido do pai).

Os respectivos nomes completos passam a:
Maria Fonseca Ribeiro
e
Manuel Ribeiro Fonseca.

Eles têm dois filhos, a quem chamam:
Ana
e
Joaquim.

Os respectivos nomes serão:
Ana Ribeiro Fonseca, ou, numa versão minimalista, Ana Fonseca
e
Joaquim Fonseca Ribeiro, ou simplesmente Joaquim Ribeiro.

Nem é uma proposta muito radical, certo? Não estou a questionar toda esta historia de apelidos, admitindo que pode ser uma forma interessante de identificar famílias... talvez? Por isso mesmo, é também muitas vezes uma forma de perpetuar estatutos sociais, identificando castas pelos respectivos apelidos. Então talvez não seja assim tão inócuo.

Porquê escrever sobre isto? Há muitas mensagens explícitas ou implícitas que diariamente nos recordam que homem é melhor que mulher, que a mulher é de algum modo um ser inferior, menos importante. Este protocolo pouco contestado dos apelidos é só mais uma forma de transmitir essa mensagem. Outros exemplos:

  • Em várias línguas é comum usar o masculino como género gramatical neutro. Uma das vantagens que vejo no inglês (que não é língua que aprecie demasiado, mas funciona bem como língua franca) é que permite uma linguagem bastante mais neutra que o português

  • Só três das 44 monarquias que sobram no mundo têm mulheres monarcas. (Países “avançados” como a Suécia, Holanda, Noruega e Bélgica só nos últimos 20 a 30 anos declararam primogenitura igualitária: o descendente mais velho do monarca, homem ou mulher, ascende ao trono.*)

  • Nas várias religiões do mundo há vários exemplos de funções vedadas ou dificultadas às mulheres (ex., sacerdócio no catolicismo, judaísmo ou islamismo), e deus é frequentemente masculinizado ou comunica privilegiadamente com homens (ex., Cristo, 12 apóstolos; principais deuses hindus – Brahma, Vishnu e Shiva – tipicamente representados como homens; Abraão, Moisés & Cia.**; Maomé; Buda***)


Não advogo a masculinização da mulher – simplesmente que se lhe dê o direito de ser o que quiser ser. Podemos continuar a chamar os nossos filhos o que a tradição sugere, ou, melhor ainda, o que quisermos. Mas vale a pena sermos conscientes das mensagens subtis (e não tão subtis) que muitas vezes abafam os nossos valores e reforçam funcionamentos talvez não ideais da sociedade.


*E nem vou discutir aqui o anacrónico conceito de monarquia, cuja maior "utilidade" talvez seja encher páginas da Hola!
**Por outro lado, é verdade que os judeus têm uma tradição de transmissão matrilinear do judaísmo: um filho é judeu, ou uma filha judia, se e só se a mãe for judia, sendo indiferente o que o pai seja (o que na verdade talvez seja novamente um peso exactamente para as mulheres: num casal amigo meu, marido judeu, mulher não-judia, ela está a completar um técnico, moroso e complicado processo de judaização, dissociado de qualquer tipo de conversão religiosa, simplesmente para que mais facilmente os eventuais filhos se possam integrar na sociedade israelita)
***É discutível se Buda era um mensageiro divino, mas o argumento é o mesmo: também o budismo privilegia o macho sobre a fêmea – nunca ouvi falar de uma mulher que atingiu o nirvana (mas é provável que exista)

4 comentários:

  1. Muito boa ideia essa dos nomes. Para adaptar a Espanha é só fazer as devidas trocas do primeiro e segundo apelidos!

    Quanto aos reis, lembro que há reis que não são chefes de nenhume stado reconhecido pela comunidade internacional, mas que não deixam de o ser. Falo dos reis africanos. Só em Angola há 12.

    A sucessão ao trono em monarquias africanas é dada ao filho mais velho da irmã do rei porque é o único que se tem a certeza que é da família. Em culturas poligâmicas tem que ser assim! Os irmãos são os filhos da mesma mãe, porque o pai às vezes nem elas sabem quem é. Não sei se há algo contra a existência de rainhas nestas monarquias, isto é, se o filho mais velho da irmã do rei foi menina, mas acho que não. Sei de uma rainha angolana, que é a rainha Jinga, mas essa destronou o irmão...

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  2. Bolas, se era só para exemplificar, podias ter escolhido apelidos que não rigorosamente os da minha família.
    Já estou toda baralhada...só Marias Fonsecas Ribeiros, temos 5 lá em casa...

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  3. Muito bom!!
    Acho que devíamos ter no máximo 3 nomes. Um nome próprio, um do Pai e outro da Mãe.
    Eu tenho 6 (fraquinha ao pé do Picasso...) e nem imaginas o trabalho que dá.
    Claro que já adoptei há muitos anos apenas o 1.º e o último e por vezes quase que me esqueço dos outros 4.

    Belo tema!

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  4. Clinton?
    (By José Saramago)

    Que Clinton? O marido, que já passou à história? Ou a mulher, cuja história, em minha opinião, só agora vai começar, por muito senadora que tenha sido? Fiquemos-nos com a mulher. Convidada por Barack Obama para secretária de Estado, terá, pela primeira vez, a sua grande oportunidade de mostrar ao mundo e a si mesma o que realmente vale. Obviamente também a teria, e por maioria de razões, se tivesse ganho a eleição para a presidência dos Estados Unidos. Não ganhou. Em todo o caso, como se diz na minha terra, quem não tem cão, caça com gato, e creio que todos estaremos de acordo em que a secretaria de Estado norte-americana, gato não é, mas tigre, felinos um e outro. Apesar da pessoa nunca me ter sido especialmente simpática, desejo a Hillary Diane Rodham os maiores triunfos, o primeiro dos quais será manter-se sempre à altura das suas responsabilidades e da dignidade que a função, por princípio, exige.

    O que aí fica não é mais que uma introdução ao tema que decidi tratar hoje. O leitor atento terá reparado que escrevi o nome completo da nova secretária de Estado, isto é, Hillary Diane Rodham. Não foi por acaso. Fi-lo para deixar claro que o apelido Clinton não lhe foi dado no nascimento, para mostrar que o seu apelido não é Clinton e que havê-lo tomado, fosse por convenção social, fosse por conveniência política, em nada alterou a verdade das coisas: chama-se Hillary Diane Rodham ou, no caso de preferir abreviar, Hillary Rodham, muito mais atractivo que o gasto e cansado Clinton. Nem um nem outro me conhecem, nunca leram uma linha minha, mas permito-me deixar aqui um conselho, não ao ex-presidente, que nunca aos conselhos deu grande atenção, sobretudo se eram bons. Falo directamente à secretária de Estado. Deixe o apelido Clinton, que já se parece muito a um casaco coçado e com os cotovelos rotos, recupere o seu apelido, Rodham, que suponho ser de seu pai. Se ele ainda é vivo, já pensou no orgulho que sentiria? Seja uma boa filha, dê essa alegria à família. E, de caminho, a todas as mulheres que consideram que a obrigação de levar o apelido do marido foi e continua a ser uma forma mais, e não a menos importante, de diminuição de identidade pessoal e de acentuar a submissão que sempre se esperou da mulher.

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