Estás a trabalhar há três anos seguidos sem um único dia de descanso: nem fim-de-semana, nem feriado, muito menos férias. O teu horário normal de trabalho vai das seis da manhã às onze da noite, por vezes estendido até de madrugada. Sem descansos. Estás longe de casa, da família (possivelmente incluindo cara-metade e filhos pequenos) e amigos. Nunca poderias suportar as despesas, mas, mesmo que pudesses, sabes que é ilegal trazeres a família para viver contigo. Como não tens tempo livre, não conheces aqui ninguém além dos teus empregadores. Dizem que é para teu bem, porque assim não corres o risco de “conhecer alguém” e sabe-se lá o que poderia acontecer – também é ilegal ter filhos aqui. Raramente sais à rua, mas quando sais reparas como as pessoas ou te ignoram, como se fosses transparente, invisível, inexistente, ou são agressivas, como se fosses um animal, um ser inferior. Não, não é escravidão: até recebes 150 Euros por mês. Mas só desde o sétimo mês, porque antes tiveste de pagar as despesas de formação e contratação. Nada de subsídio de férias (para quê? não há férias!), nem 13º mês, nem segurança social, nem pagamento de horas extraordinárias. És uma empregada doméstica imigrante em Singapura.
Sou um fã de Singapura, de como o país se organizou em 40 anos, da qualidade de vida de que praticamente todos os singapurenses usufruem, da ausência de miséria, da eficiência do Estado, do razoável civismo da população... Muito mais do que o défice democrático (que até entendo que tenha algumas implicações positivas, como permitir gerir o país sem as políticas populistas de curto-prazo com que os partidos dominantes noutros países tentam assegurar a permanência no poder), aquilo que mais me choca neste país é a existência de castas inferiores como os foreign workers que constroem o país e as empregadas domésticas estrangeiras que cuidam das casas e das crianças. Como pode isto acontecer num país em que a população vive tão bem, em que convivem pessoas de tantas etnias, culturas, religiões, com alguns preconceitos, é verdade, mas em geral com respeito, cordialidade, em paz e harmonia?
A “indústria” das domésticas
Em 1978 Singapura entreabriu as portas a empregadas domésticas estrangeiras, para facilitar a entrada das mulheres singapurenses no mercado de trabalho e garantir as obsessivas metas de crescimento económico. Hoje uma em cada seis famílias em Singapura tem uma empregada que vive em casa. São cerca de 180 mil (4% da população), a maioria filipinas e indonésias, algumas indianas, cingalesas, tailandesas e outras. Vêm atraídas pela possibilidade de ganharem salários de outra forma impensáveis, com sonhos de poupança para proporcionarem melhores vidas às suas famílias: uma casa, um terreno, um negócio... Ganham entre 100 e 150 Euros por mês (varia por origem: uns 100 Euros para as indianas, 150 para tailandesas e filipinas), mas nos primeiros meses o salário é descontado para pagar os custos das agências de recrutamento que as trouxeram para Singapura (na ordem dos 1.000 Euros).
Além das agências de recrutamento, também o Governo de Singapura faz dinheiro com as empregadas domésticas estrangeiras: os empregadores pagam uma taxa mensal de 130 Euros por cada empregada, totalizando uns 23 milhões de Euros por mês, ou 280 milhões de Euros por ano (cerca de 1% das receitas de Estado, não contribuindo para qualquer fundo de apoio às empregadas imigrantes). Tendo em conta que em Singapura não se paga IRS sobre os primeiros 10.000 Euros de rendimentos anuais, e que a taxa mais elevada de IRS é de 20% para rendimentos acima dos 160.000 Euros, é difícil compreender porque é que as domésticas estrangeiras pagam 50% ou mais. Segundo a explicação oficial, é um mecanismo para limitar a procura de mão de obra importada. Será que o super-eficiente Governo de Singapura nunca ouviu falar de ordenado mínimo? Permite o mesmo controlo dando a ganhar a quem realmente trabalha.
Até os Governos dos países de origem das domésticas têm interesses económicos nesta “indústria”. Além de cobrarem diversas taxas no processo de emigração, apreciam bastante as significativas remessas de dinheiro: os 2,5 milhões de domésticas indonésias no estrangeiro e 3 milhões de filipinas enviam valores na ordem de 1 a 2% do PIB de cada país. Por isso não é frequente ouvi-los defender os interesses das suas cidadãs. Uma excepção é a recente proibição indonésia de emigração de domésticas para a Malásia, como retaliação por maus tratos a uma empregada, reivindicando garantias de melhores condições (o Governo da Malásia entretanto anunciou revolucionárias mudanças nas leis laborais para tornar obrigatório um dia de descanso semanal para as domésticas estrangeiras – soa algo anacrónico, mas mais vale tarde do que nunca). Outra excepção foram os protestos em 1995 do então presidente das Filipinas, Fidel Ramos, quando Flor Contemplacion, uma doméstica filipina, foi condenada à morte e executada em Singapura, acusada de ter morto uma outra doméstica filipina e a criança de quem ela cuidava. Flor Contemplacion tornou-se símbolo do sofrimento das imigrantes filipinas pelo mundo, o dia da sua morte é lembrado anualmente e a sua história foi registada num filme.
Proibido engravidar
Além da taxa mensal, o Governo de Singapura exige que cada empregador faça um depósito de segurança de 2.500 Euros, oficialmente justificado como forma de garantir que o empregador repatria a empregada no final do contrato. Se a empregada desaparecer, o empregador perde o depósito. Isso serve de desculpa para muitas pessoas restringirem brutalmente a liberdade de movimentos das suas empregadas domésticas. Muitas praticamente nunca saem de casa. Estima-se que metade não tenha nunca um único dia livre. São comuns relatos de maltratos, verbais e físicos, incluindo casos de violação. Todos os anos há dezenas de histórias de mortes por quedas de apartamentos altos – suicídios ou talvez não.
O visto de empregada doméstica (é um visto específico!) não permite trazer familiares para Singapura, nem casar com um cidadão singapurense sem autorização prévia do Ministério do Trabalho, nem engravidar nem ter filhos aqui (elas têm de fazer exames médicos a cada seis meses para verificar que não sofrem de doenças infecciosas nem estão grávidas, sob pena de deportação). Também não permite realizar trabalhos que não sejam domésticos, muito menos abrir o próprio negócio. E obriga a habitar e trabalhar unicamente na morada do empregador.
Uma leitura da Declaração Universal dos Direitos Humanos permite identificar uma quantidade deprimente de direitos que não estão a ser respeitados neste opressivo regime.
Este tipo de tratamento não é exclusivo de Singapura. Ouvem-se história semelhantes de outros países no sudeste asiático e no Médio Oriente. Umas piores que outras. Em Hong Kong, para dar um exemplo menos mau, é impossível passear ao domingo sem encontrar multidões de mulheres sentadas nos parques da cidade, conversando, comendo, jogando às cartas. São as mais de 200 mil domésticas estrangeiras, gozando o seu dia de descanso semanal. Como vivem em casa dos patrões, restam os espaços públicos para se encontrarem. Privilegiadas, comparadas com colegas noutros países: além do domingo, têm salário mínimo acima dos 300 Euros por mês.
Hong Kong ao domingo
Activismo nascente
Nos últimos anos foram criadas em Singapura duas organizações orientadas para a defesa dos direitos deste tipo de emigrantes: a Humanitarian Organization for Migration Economics (H.O.M.E.) e a Transient Workers Count Too (TWC2). Em conjunto com o Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (UNIFEM), lançaram no ano passado a campanha “Day Off” para sensibilizar a população para dar um dia livre por semana às domésticas. Pouco mais de 2.000 pessoas subscreveram a campanha – espero que mais por falta de visibilidade do que de identificação com a causa... mas infelizmente não estou muito certo disso.
Escravatura global
Será só “lá longe, na Ásia” que existe escravatura no século XXI? De forma mais óbvia ou mais subtil, podemos provavelmente encontrar exemplos de grupos de escravos e intocáveis em todas as sociedades. As tradicionais divisões socioeconómicas, a crescente especialização do trabalho e a lei amoral da oferta e da procura habituaram-nos à ideia de que é inevitável e normal (e portanto provavelmente bom, excepto quando somos nós os afectados) que uns façam trabalho mais interessante, mais agradável, mais limpo, talvez mais nobre, que outros. E que uns (muitas vezes os mesmos “uns” da frase anterior) sejam muito mais generosamente recompensados pelo seu trabalho que outros. Uns do lado certo, outros do lado errado da vida. Não ambiciono classificar umas tarefas ou profissões como absolutamente desejáveis e outras como absolutamente indesejáveis. Felizmente, cada indivíduo tem diferentes preferências e sente inclinação para aplicar o seu tempo e energia em diferentes actividades. (Confesso que tenho as minhas dúvidas de que haja indivíduos genuinamente motivados para todas as actividades... Será que não há algumas que cada um deveria fazer por si, para evitar sobrecarregar outras pessoas?) Mas parece-me absolutamente desejável que cada pessoa tenha o poder e a liberdade para escolher o rumo que quer dar à sua vida (em harmonia com a liberdade dos outros). E que essa liberdade não seja covardemente agredida por governos ou patrões autoritários, cegos, egoístas, sem escrúpulos. Não só por eles (sempre “eles”), mas também por mim próprio, em pensamentos, palavras, actos ou omissões.
Para saber mais:
- Reportagem SBS/Dateline sobre o “comércio de domésticas” no sudeste asiático (20')
- Reportagem Al Jazeera sobre domésticas indonésias (4')
- Relatórios da TWC2
- Site da campanha “Day Off”
- Filme “The Flor Contemplacion Story”
- “No Day Off”, filme curto do realizador singapurense Eric Khoo