domingo, 27 de fevereiro de 2011

Maratona de Tóquio

Resultados:
. Nuno 2h56m38s
. Silvia 5h14m27s

Fotos (reparem nas expressões bastante diferentes entre nós! :) ):
. Sílvia
. Nuno
(se for preciso uma password de acesso, experimentem os 4 dígitos do ano em que estamos...)

Estamos (razoavelmente) inteiros e felizes! Obrigado a todos pelo apoio!!

Este gráfico ilustra quão penosa foi a minha prova, especialmente a partir da meia-maratona, em que cada km era um pouco mais lento...


domingo, 20 de fevereiro de 2011

Ganbatteeeeee!!!

No início de Outubro, após o triatlo longo de Desaru, fiquei a pensar qual seria o próximo desafio desportivo... Outro triatlo? Uma meia-maratona? O Troféu Marquês do Funchal de pentatlo...?

No dia 15 de Outubro recebi um e-mail que decidiu por mim:

Assunto: TOKYO MARATHON 2011, Result of lottery ID No: 3032-000

Pensei "Ok, é o e-mail a avisar que não ganhei um lugar na maratona de Tóquio..." Tinha me inscrito na lotaria da maratona em Agosto, por sugestão da Joana (companheira de aventuras na meia-maratona de Hong Kong há um ano), mas sabia que todos os anos se inscrevem mais de 300.000 pessoas e só 10% conseguem participar.

Ainda assim, abri o e-mail com uma certa ansiedade e... as expectativas não se confirmaram!

Congratulations!
You have been selected to run the 2011 Tokyo Marathon.


IUUUUUUHHHHUUUUUUUUUUUUUUU!!! A descarga eléctrica pela espinha dispensou qualquer raciocínio: estava claríssimo que iria correr a maratona de Tóquio no dia 27 de Fevereiro de 2011! Bora lá!


Condições perfeitas

Ainda por cima, ao investigar um pouco mais observei que estavam reunidas condições perfeitas para melhorar o meu recorde de Nova Iorque'2008 (2h57'51")!
. faltavam 4 meses e pouco - ideal para uma excelente preparação (nem de mais, nem de menos)
. naquele momento eu estava em boa forma física e sem lesões, depois de uns meses de bons treinos de ciclismo (para o triatlo de Desaru), mas também corrida (tinha corrido uma meia-maratona em Singapura em Setembro, com terrível calor e humidade, em 1h27') e natação
. em Fevereiro faz frio em Tóquio (na edição de 2010 fez talvez demasiado frio), excelente para tempos rápidos
. o percurso é bastante plano, inclusive a descer na primeira metade, só com um par de pontes que não parecem muito altas nos últimos kms (ver percurso e elevação aqui, ou então no Google Earth)
. participam mais de 30.000 atletas, garantindo companhia e animação em todo o percurso
. os japoneses são loucos por maratonas e todos os anos mais de um milhão de pessoas saem às ruas para apoiar os loucos maratonistas, faça chuva, frio, neve ou sol
. o percurso é bastante turístico, passando por vários marcos de Tóquio, o que pode ajudar a distrair-me do esforço de vez em quando

(Além destes factores todos, hoje pesei-me - algo que não fazia desde o Natal - e estou bastante leve: 62,5 kg.)

Ou seja, teria as fantásticas condições de Nova Iorque e ainda:
. iria treinar mais kms com mais intensidade
. a partir de uma base de forma física melhor do que a que tinha em 2008
. e o percurso seria mais plano (e talvez menos ventoso?)


Recorde pentatlético da maratona

Em 2009, 4 meses depois de eu baixar pela primeira vez das 3h na maratona, o André, colega pentatleta, correu a sua primeira maratona (Barcelona) em 2h44'17"... Recorde absoluto pentatlético português nos 42,195 km!! Ainda por cima, o André não era particularmente famoso como super corredor no pentatlo. Admirável resultado! Claro que fiquei curiosíssimo por saber como tinha sido a preparação.

Percebi que ele tinha seguido um plano de treinos bastante diferente do que eu costumo fazer antes de uma maratona:
. mais dias por semana: normalmente seis, descansando à segunda-feira
. mais kms: por volta dos 100 por semana, chegando a uns 120 nas semanas 3, 4 e 5 antes da maratona
. menos treinos longos: chegando a 30-32 kms apenas em cinco treinos
. todos os treinos mais longos: tipicamente 75' ou 90'
. correndo mais forte: praticamente todos os treinos tinham fartleks, com períodos a velocidade média/rápida intercalados por corrida a ritmo de cruzeiro

Tantas diferenças talvez explicassem o resultado espectacular em Barcelona! Decidi adoptar um plano bastante próximo do dele, ajustando as frequências cardíacas alvo (que definem a intensidade de cada parte do treino) para o que me pareceu adequado às minhas características individuais.

Obrigado, André, pela inspiração competitiva, e por todas as dicas! O teu admirável recorde não parece muito ameaçado... mas quem sabe? :)


Preparação

O plano de treinos, com mais kms e mais intenso que nunca, foi executado quase sem sobressaltos. Durante muitas semanas, o plano pareceu-me muito duro por deixar as pernas sempre bastante cansadas, a ponto de eu começar cada treino a pensar que não conseguiria cumprir as intensidades desejadas. Mas foi muito revelador verificar que sim, era possível cumprir todos os treinos razoavelmente.

Também reparei que o facto de não fazer treinos tão longos (32 kms ou mais) como em preparações anteriores evitava ficar todo roto e a precisar de vários dias para recuperar.

Em Dezembro decidi fazer a meia-maratona que faz parte dos eventos da maratona de Lisboa. Decidi aquecer durante quase uma hora, correndo de casa até Santos, onde arrancava a meia-maratona, para simular uma situação mais próxima da maratona. O objectivo era correr a meia-maratona a 4'/km (o ritmo alvo para Tóquio) e foi um sucesso: apesar de já levar uns 12 kms nas pernas quando parti (e 80 kms nessa semana), e de o tempo estar mais quente que esperado, consegui manter o ritmo, sem reduzir muito na subida da Almirante Reis entre o Martim Moniz e o Areeiro, e terminei em 1h23'54". Fantástico!!! A deixar óptimas perspectivas para os dois meses e meio de treinos pela frente.

Ainda em Portugal, corri no dia 26 de Dezembro a São Silvestre de Lisboa em 35'51", 4" menos que no ano passado. Um tempo bastante rápido, especialmente animador pensando que foi uma semana de alto volume (100 kms). Mesmo sabendo que não teria de correr tão rápido em Tóquio, foi animador ver que o aumento de quilometragem não me estava a deixar mais lento!

Ao longo do tempo foi ficando cada vez mais fácil encarar as tarefas fortes. Mas só nas últimas semanas deixei de ter a sensação de constante cansaço muscular. Espero que signifique que as pernas se vão manter poderosas até à meta!

A rápida gripe Oinc Oinc há 1 mês estragou uma semana de treinos (como se pode ver no gráfico abaixo, na semana 15), mas rapidamente voltei à acção. O pior foi que nos primeiros dias sentia as pernas muito pesadas e os ritmos eram desanimadoramente lentos. Mas ao quinto dia de regresso já me sentia de novo "normal" (se é que algum leitor concorda que alguma coisa nesta bulicena é normal). Foi a semana de maior volume da história buliana: uns 130 km.

Este gráfico dos kms de treino por semana para cada uma das minhas últimas cinco maratonas (não corri Hong Kong, mas treinei até 10 dias antes...) mostra como treinei mais do que nunca para Tóquio.



O trabalho de casa está feito. Agora é colher os resultados. Se gerir bem o esforço, me alimentar bem e..... serão os melhores de sempre!


Calções vermelhos?

Então e os calções vermelhos?? Vão ou não desfilar pelas ruas de Tóquio??

Eu sei que arrisco perder os poucos leitores que restam com tamanha desilusão mas... não. Os calções vermelhos não foram seleccionados para participar na maratona de Tóquio. Eles ainda existem e ainda funcionam (sei que alguns leitores discordam...), mas foram preteridos por duas razões práticas:
1. Os calções pretos e amarelos que usei em Nova Iorque e Dili têm um excelente bolso interior que permite levar três ou quatro embalagens de gel energético (evitando ter de ocupar as mãos com os mantimentos, o que em Tóquio, além de dificultar agarrar copos/garrafas nos postos de abastecimento, levaria a que as mãos mais rapidamente congelassem)
2. Os calções vermelhos ainda não se desintegraram totalmente mas o elástico está fraco e tendem a descair... e não queremos criar uma situação ainda mais indecente do que em Mumbai'2008, não é?


Objectivos

Como de costume, tenho uma lista de objectivos para o próximo domingo. Em ordem crescente de dificuldade:
1. Curtir!!! Curtir a festa do desporto, os outros corredores, incluindo a Sílvia e a Joana, o público, os voluntários, o frio, talvez a chuva e/ou a neve, a cidade, o esforço, o ritmo, as variações de energia, os arrepios pela espinha dorsal, a adrenalina, etc., etc. Talvez não tenha o privilégio de privar com o Haile Gebrselassie como com o Philimon Rotich em Dili'2010. Mas talvez seja mais fácil encontrar e interagir com o Joseph Tame e o seu espectacular iRun ("o estúdio de média social mais avançado do mundo").
2. Terminar a prova, roto mas em bom estado anímico (i.e., não num estado semelhante ao da minha primeira maratona)
3. Terminar em menos de 3 horas
4. Bater o meu recorde pessoal: 2h57'51"
5. Terminar em menos de 2h50'
6. Correr a uma média de 4'/km (2h48'47") ou melhor
7. Bater o recorde pentatlético português do André: 2h44'17"
8. Bater o recorde da Bain Brasil, de outro André: 2h43' (tenho de lhe perguntar qual é exactamente o recorde dele, mas tenho ideia de que era por aí)

Vou lançar a corrida no ritmo de 4'/km e espero mantê-lo bastante constante até ao final. Com base nos treinos que tenho feito (no calor de Singapura), parece-me bem desafiante mas possível. A limitação vai ser energética (vou disciplinadamente tomar um gel energético a cada 10 ou 12 km) e muscular. Em termos cardiovasculares espero que seja até relativamente fácil, como tem de ser.

Desta vez não apresento nenhuma tabela complicada com os tempos estimados porque os cálculos são muito simples. Se quiserem saber onde vou estar em cada momento, basta considerar que vou correr a 4 minutos por quilómetro (e todos os leitores sabem a tabuada do 4, certo?). Então, se a prova começar à hora programada (9:10 em Tóquio, 0:10 em Lisboa):
. Para saber em que km vou: km actual = (hora actual - 9:10) em minutos / 4
. Para saber a que horas vou passar em cada km: hora de passagem = 9:10 + km x 4'

Portanto considero à partida os objectivos 7 e 8, de bater os recordes dos Andrés, difíceis de alcançar. Se passar na meia-maratona no ritmo planeado (1h24') é difícil imaginar que me sinta tão bem que consiga correr a segunda metade em 1h20' ou menos. Mas quem sabe?

Claro, também pode acontecer muita coisa inesperada que torne os outros objectivos mais difíceis do que espero. Mas não estou a ver a vantagem de colocar essas possibilidades agora!


Primeira maratona da Sílvia!

Mesmo que eu bata o meu recorde, os recordes dos Andrés ou até ganhe a maratona, o mais impressionante desta vez é que a Sílvia vai correr a sua primeira maratona!!

Depois do sucesso do ano passado correndo a primeira meia-maratona em Hong Kong, ela decidiu aventurar-se no dobro da distância. Novamente com um plano de treinos minimalista, mas mais disciplinado que no ano passado, já com grandes sucessos sem ainda ter corrido a maratona: primeira vez a ir a correr para o trabalho, primeira vez a vir a correr do trabalho para casa, primeira corrida de mais de 3h, a ideia de que uma corrida de 1h é uma corrida curta... Excelentes resultados!! No próximo domingo o objectivo é curtir e completar a prova. Não importa o tempo final, mas acreditamos que será pelas 5h e tal.

Como diz a Sílvia, os meus feitos não inspiram ninguém, porque ninguém acha que eu seja normal. Esperamos que o feito dela, uma pessoa "normal" (adjectivo bastante questionável começando pelo facto de me aturar há demasiado tempo...), seja mais inspirador! Toca a correr, pessoal!!


Apoio à distância

Todos os comentários, mensagens, sms, e-mails, ondas telepáticas de elevadas energias positivas, antes, durante ou após a maratona são muito bem-vindos!! E quem quiser aparecer em Tóquio é também muitíssimo bem-vindo: avisem em que km tencionam estar, para vos tentarmos ver!

Parece que no site da maratona de Tóquio será possível, durante a prova, verificar os tempos de passagem dos atletas a cada 5 km. Acredito que a maioria dos leitores das bulicenas estará a dormir durante a corrida. Se alguém estiver num fuso horário mais compatível, ou a sofrer de uma forte insónia e sem nada melhor para fazer, visite o site da maratona e procure algo chamado "Race record newsflash" ou "Runner Update Service", e procure pelo meu nome ou número (22330), ou os da Sílvia (53935), para saber onde andamos.

Os links para este serviço no ano passado eram:
. Acesso por computador
. Acesso por telemóvel


Ganbateeeeee!!!

A uma semana da prova não há muito mais a fazer. Treinar pouco e garantir que as pernas chegam ao grande dia frescas e sem mazelas. Dormir bem. Comer bem mas não demasiado. E terminar toda a preparação mental para me sentir o todo-poderoso super-Buli às 9h10 do próximo domingo.

Ah, claro: também é boa ideia evitar acidentes domésticos - consta que há por aí quem se lembre de partir dedos mindinhos em vésperas de maratonas!

Já começo a ouvir os gritos constantes do público durante toda a prova:

GANBAAAATTEEEEEEEEEEE!!!

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Sou euroasiático

Em Singapura aparecem-me frequentemente formulários (tipicamente relacionados com serviços públicos) onde perguntam a minha "Race".

Adoraria responder "marathon", "pentathlon", "triathlon" ou algo do estilo, mas sei que não é essa a "race" desejada. Eles querem saber a minha "raça".

Se bem me recordo, a última vez que ouvi falar de raças humanas foi alguém a dizer que elas não existem. Não sei se a afirmação é cientificamente sólida, mas gosto das implicações ideológicas e humanitárias e por isso adoptei-a logo (a wikipedia não me ajuda a esclarecer a questão). Por isso costumo deixar o espaço da "raça" em branco.

Em Outubro candidatei-me a ser "Permanent Resident" aqui em Singapura, e lá estava a pergunta habitual no respectivo formulário. Claro que a deixei em branco, apesar de ser tentador escrever ali alguma coisa que pudesse soar positiva a quem fosse avaliar a minha candidatura (partindo do pressuposto, provavelmente não disparatado, de que há algum tipo de discriminação na avaliação dos hiper-eficientes serviços públicos singapurenses).

Mas a entrega da candidatura é feita presencialmente e tive direito a um funcionário das autoridades competentes durante talvez meia hora a analisar os múltiplos formulários e documentos.

Entre outras coisas, ele perguntou:

Qual é a sua raça?

Da última vez que ouvi falar, não existiam raças humanas...

[Felizmente ou infelizmente, o senhor era bastante humilde e não me pôs logo "na ordem"]
Mas... em Portugal não existem raças?

Que eu saiba não. Que eu saiba não existem raças humanas em lado nenhum.

Talvez... "raça portuguesa"?

"Portuguesa" não é uma raça, é uma nacionalidade. Há portugueses de todas as cores, tamanhos e feitios.

Mas... você tem de pôr aqui alguma coisa...

[Finalmente com algum senso prático]
Então diga-me o que quer que eu escreva aí.

Perguntarei ao meu supervisor qual é a raça no seu caso.


Pouco depois ele foi falar com o supervisor sobre este e outros detalhes e voltou uns minutos depois com a resposta:

O supervisor diz que pode escrever "euroasiático".

Ok!


E assim fiquei a saber que sou euroasiático. Nunca é tarde de mais para aprendermos mais sobre nós próprios.

E até fiquei feliz com a resposta: dentro das que eu poderia imaginar, é a mais próxima de não ter raça nenhuma. Afinal, o continente euro-asiático corresponde a mais de 1/3 da área não submersa do planeta, e a quase 3/4 da população humana (considerando que não haja humanos extra-terrestres).

Além disso, já fui tomado por local em países como Azerbaijão, Afeganistão, Índia... portanto deve haver algo de verdadeiro na "etiqueta" de euroasiático.




Então não é que, depois de todo este trabalho, me foi recusada a residência permanente? Recebi uma carta com o resultado da avaliação do meu pedido. Curta e sem explicações, como é de esperar das autoridades singapurenses. Simpaticamente, deixam-me continuar a viver aqui.



Será que o diálogo acima teve alguma coisa a ver com a recusa? Acho que não. Ao bom estilo singapurense, onde o que importa é crescimento económico, o meu ponto mais negativo é provavelmente que ainda não lucrei milhões com a empresa que abri aqui. Se esse dia chegar em algum momento... fico a pensar, um pouco a la Grouxo Marx*, se quererei ser residente permanente num país que (só) aceita pesssoas como eu como residentes permanentes?


*"I don't want to belong to any club that will accept people like me as a member" (daqui)

Nota: Ser "residente permanente" não é algo fundamental para mim. A principal motivação é reduzir burocracia: durante 5 anos não precisaria renovar o meu visto de residência (que me obriga a anualmente submeter uma série de documentos, e pode sempre ser recusado porque não estou a fazer milhões - ou seja, não estou a contribuir significativamente para a economia ou para a receita fiscal de Singapura). Além disso devem existir algumas outras implicações práticas, como poder fundar uma empresa ou outra organização sem necessidade de ser em parceria com um singapurense ou residente permanente, poder ser membro de uma associação, poder comprar casa... Nada de especial.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Persepolis

O meu plano ontem à noite era ir dormir cedo e acordar bem cedo para o treino de corrida. Mas alguém tinha feito outros planos.

Na véspera, investigando informação para escrever uma bulicena, passou-me à frente o teaser de Persepolis - um filme de animação sobre a infância e juventude de uma iraniana em tempos de revolução.



Decididamente um filme a ver numa próxima oportunidade, em algum dos frequentes festivais de filmes mais ou menos alternativos aqui em Singapura.

O que não esperava era logo ontem encontrar o livro The Complete Persepolis (no qual o filme se baseou) ali mesmo, em cima da mesa no escritório do meu sócio.



Coincidência?? Talvez não. O livro já estava ali há uns dias e certamente eu já o tinha visto mas não tinha reparado. Até à véspera tinha sido um livro qualquer. Mas agora já não era um livro qualquer: estava ali a gritar "Lê-me!". Trouxe-o para casa, é claro.

Pelas 21h30 sentei-me na cama a ler. Ia ler umas páginas e deitar-me pelas 22h... Mas fui lendo e lendo e lendo... e a certa altura a ideia era ler metade do livro e deitar-me pouco depois das 23h... Mas fui lendo e lendo e lendo... e a certa altura o plano era deitar-me pela meia-noite e deixar o resto do livro para o dia seguinte... Comecei a sentir fome... e fui comer qualquer coisa, já consciente de que ia acabar o livro de uma assentada às horas que fosse. Pela 1 da manhã fechei o livro.

Algo de especial tinha acontecido. Há quantos anos eu não lia um livro de uma vez só? E há quanto tempo não lia um livro de banda desenhada?

Persepolis relata a vida da autora, Marjane Satrapi, entre os 10 e os 24 anos (de 1979 até 1993). Até aos 14 anos viveu em Teerão. Nessa altura os pais mandaram-na para Viena (Áustria) onde achavam que ela teria uma melhor educação, mais livre... e não se meteria em trabalhos. Os 4 anos na Áustria foram bastante agitados, lidando com desafios como choques culturais, transformações da adolescência, pressões sociais (diferentes das iranianas)... e sem manter grande ligação ao que se passava no Irão (na minha visão de puto de 10 anos, no Irão "só" se passava a aparentemente interminável guerra Irão-Iraque, que para mim tinha existido desde "sempre"). Depois de um período mais complicado em Viena, Marjane regressou a Teerão aos 18 anos. Sentia-se estrangeira ali, tal como se tinha sentido estrangeira em Viena. Depois de uma depressão com o choque inicial do regresso e dúvidas existenciais, decidiu voltar a viver. Facilmente se metia em sarilhos relacionados com o seu comportamento "indecente" e a sua frontalidade a criticar o que lhe parecia inapropriado. Estudou comunicação visual, casou-se aos 21, divorciou-se aos 24. O livro acaba com a sua emigração para França (para não voltar, segundo promessa à mãe).

O livro transmite emoções, não só em situações extremas de guerra e repressão, mas também na vida "normal" de uma criança e adolescente com os seus familiares e amigos. Mostra a visão crítica de Marjane sobre a revolução islâmica de 1979 no Irão e as mudanças no país nos anos que se seguiram. Certamente uma das visões possíveis.

Marjane não se tenta promover como a rebelde coerente sempre fiel aos seus princípios. De forma muito honesta, mostra sem pudor virtudes e fraquezas. Excepto em um par de situações em que expressa arrependimento, Marjane não se dedica a julgar os seus comportamentos como bons ou maus. Mas não se inibe de criticar o regime e as suas práticas opressivas e sexistas.

Não entendo de arte gráfica e banda desenhada mas Persepolis pareceu-me excelente pela expressividade conseguida através de desenhos minimalistas, eliminando detalhes supérfluos para focar a atenção no essencial. Puro preto-e-branco, com poucos traços. Detalhes escassos, mensagens potentes. Vejam uma parte do livro aqui.

Não é surpreendente que os livros e o filme tenham tido bastante sucesso no mundo "ocidental": não é uma visão propriamente abonatória do regime islâmico. Mas não me parece que alimente a fogueira do suposto conflito Ocidente-Islão (essa invenção bushiana de inspiração huntingtoniana que infelizmente tem muitos crentes pelo mundo fora). Persepolis não promove generalizações superficiais sobre "bons" e "maus". O mundo de Hollywood e o mundo da propaganda é assim: branco ou preto. O mundo real é complexo, colorido (e, paradoxalmente, Persepolis é a preto-e-branco mas é bastante colorido!), cheio de diversidade mas também de muitas semelhanças. Afinal de contas, nós, humanos, somos todos... humanos. Em todo o lado há pessoas abertas, inteligentes, conscientes dos outros... e há uma ou outra mais cega e/ou mais estúpida.