Durante os seis meses na Índia tive direito a carro, incluindo um fantástico motorista: o Rana.
A disponibilidade do Rana era impressionante: 24/7 se necessário. Nunca se atrasou para me vir buscar. No mínimo, chegava exactamente à hora certa, mesmo que fosse às quatro da manhã para ir apanhar um voo madrugador. Houve até uma vez em que, por falha de comunicação, ele me veio buscar às três e meia da manhã... quando eu na verdade precisava dele às três e meia da tarde... e isso depois de ele me ter deixado em casa perto da meia-noite! Total disponibilidade. Obrigado!
Outro impressionante atributo do Rana era a precisão absoluta nas estimativas de tempo até cada destino. Mesmo com o implacável e aleatório trânsito que frequentemente assola Nova Deli e arredores, a qualquer hora do dia ou da noite, o Rana acertava com erro inferior a 10% (ou seja, seis minutos por hora) em quanto tempo íamos demorar. Graças a ele nunca me atrasei para nenhum comboio, voo, encontro ou reunião. Obrigado!
O Rana é um homem de poucas palavras. Como eu também sou, passámos muito tempo no carro em silêncio, sem qualquer desconforto. Poderia ter sido óptimo para desenvolver o meu hindi, mas além das nossas naturezas silenciosas, o inglês dele era excelente (ao contrário de muitos dos seus colegas, sobre quem ouvi bastantes reclamações) e nunca houve necessidade real de usar hindi.
Mas o facto mais impressionante sobre o Rana é que ele já esteve em toda a Índia! Cada vez que eu viajava para um novo lugar ele dizia: “É muito bom. Vai poder visitar x, y e z...” A conversa repetiu-se para (por ordem de viagem) Goa, Chandigarh, Mathura e Vrindavan, Mumbai, Ahmedabad, Jaipur, Jodhpur, Jaisalmer, Udaipur, Varanasi, Amritsar, Darjeeling... Na última vez já nem me consegui admirar por ele ter estado num estado tão longínquo como Sikkim. Suspeito que mesmo que passasse o resto da vida na Índia nunca teria visitado mais cidades que o Rana.
Tenho saudades do Rana!
quarta-feira, 16 de abril de 2008
Rana
terça-feira, 15 de abril de 2008
Reforma aos 32
“O que é que tu fazes?”
Excepto quando quem pergunta é o agente de controlo de imigração nos Estados Unidos, a minha resposta é sincera: “Estou reformado”.
Curiosamente, as pessoas ficam surpreendidas e até incrédulas quando digo que estou reformado aos 32 anos: “Já tens 32 anos??” É verdade, estou muito bem conservado :)
“Não estás a falar a sério... Estás só num intervalo, um período de descanso... É isso, não é?” Mais ou menos... mas o melhor é responder que sim se não ainda me enfiam num manicómio!
O que significa “reforma”? O dicionário é surpreendentemente elucidativo:
- acto ou efeito de reformar
- mudança para melhor
- melhoramento
- conserto
- reparação
- restauração
- modificação
- reorganização
- substituição de objectos fora de uso
- modificação de uma ordem existente
- nova organização
- nova forma
- novo feitio
- estatuto de um ex-trabalhador, beneficiário do sistema de segurança social da Caixa de Previdência, que recebe uma pensão vitalícia por ter sido dado como incapaz para o serviço, ao atingir o limite de idade ou devido a invalidez
- situação de um militar ou funcionário público nas mesmas circunstâncias
- aposentação
- jubilação
[Nota: excluí os significados históricos]
Grande parte dos significados são positivos, implicam uma melhoria, a correcção de algo que não estava bem. É curioso como o significado associado a ex-trabalhador é terrivelmente negativo e até insultuoso, uma calúnia para a maior parte das pessoas: “dado como incapaz para o serviço”??
Que quero dizer com “estou reformado”? No sentido mais convencional, significa que não sinto pressão para trabalhar em actividades remuneradas.
Não, não estou milionário (pelo menos não em euros, em rupias indonésias estou certamente). Nem é preciso ser milionário para nos reformarmos: basta atingir uma cobertura financeira infinita ou próxima do infinito. Ou seja, basta que as nossas poupanças (e rendimentos que elas geram) permitam cobrir as nossas despesas durante muito tempo. É essa a minha invejada situação, pelo menos enquanto desgraças financeiras ou de saúde não a alterarem. É como se tivesse “um milhão de contos” (ou outra quantia exorbitante) na minha conta bancária. Mas não tenho, simplesmente tenho o suficiente para viver uma vida relativamente simples durante bastante tempo.
Não quer dizer que nunca mais vá trabalhar na vida: não tenho nada contra trabalhar em geral – é muitas vezes uma óptima forma de investirmos o nosso tempo e energia! Também não quer dizer que nunca mais vá trabalhar de forma remunerada: não tenho nada contra ganhar dinheiro (desde que não seja de forma imoral).
O trabalho como consultor de gestão que me ocupava nos últimos anos era interessante e muitas vezes até divertido: viagens pelo mundo, projectos variados em indústrias diversas, com muita aprendizagem ao resolver problemas desafiantes, formação de qualidade, excelentes clientes que muitas vezes se tornaram amigos, colegas interessantes, em geral bons companheiros, vários óptimos amigos, boa remuneração... Mas havia duas características menos positivas, para mim críticas: a falta de controlo sobre o meu tempo (normalmente muito condicionado pelos compromissos profissionais) e, mais importante, a falta de uma missão – até que ponto estava a contribuir para deixar o mundo melhor?
Depois de algum tempo em que a constante animação e intensa aprendizagem alimentaram o meu dia-a-dia, comecei a sentir que estava a viver sem paixão, de forma confortável mas sem grande entusiasmo, e que se continuasse nesse caminho me arriscava a viver assim até ao fim da minha limitada vida. Dentro de uns anos olharia para trás e teria sérias dificuldades em justificar a minha passagem por este mundo. Por isso decidi reformar-me.
Ao não sentir pressão para ganhar dinheiro, mais do que nunca sinto a responsabilidade de me reformar, de me melhorar, de encontrar aplicações relevantes e meritórias para o meu tempo e energia. Procuro actividades, projectos que me preencham, que despertem verdadeira paixão, que me dêem uma missão que me faça saltar da cama de manhã com aquela garra de "vamos lá!". Causas que me façam sentido, justifiquem o investimento do meu ser, da minha existência. Afinal, cada ano que passa representa uns 2% do que me resta de vida (considerando que não vou ser pioneiro da imortalidade humana). Para quê empregar-me em causas sem sentido?
Ao reformar-me enchi-me de um enorme sentimento de leveza, de liberdade... Senti que estava a partir para outro mundo!
segunda-feira, 14 de abril de 2008
Um inglês, uma americana, uma israelita, um italiano e um português...
... encontram-se em Gangtok, estado de Sikkim, Índia (ali entre o Nepal, Butão e Tibete).
Viajantes solitários, cada um com as suas idiossincrasias. Decidiram fazer um trekking de uma semana em altitude (pelos 4.000 metros). Subir uma montanha por nenhuma razão em especial: porque ela está ali, pelo exercício físico, pela experiência espiritual? Cada um saberá a sua razão. Ou talvez não.
O inglês decidiu viajar por uns meses quando terminou a licenciatura em “International Development”. “Não, não é Desenvolvimento Económico – tentei focar-me mais nos aspectos culturais, antropológicos...” Acha que há algo de errado com o capitalismo. Tem andado pela Índia, mas dentro de um par de semanas vai para o Nepal, por mais dois ou três meses antes de regressar a casa e procurar “emprego”. Conheceu a israelita em Varanasi. Fuma, às vezes umas coisas esquisitas.
A americana dedica-se literalmente a apagar fogos: é bombeira nas florestas americanas. Circula de helicóptero por áreas de intensa natureza no Alasca, Montana, etc. Tem treino de primeiros socorros e noções e ferramentas (como o cantil purificador de água) de sobrevivência na natureza – provavelmente a pessoa mais útil do grupo nesta aventura. Como o trabalho só a ocupa no Verão, aproveita o Inverno para viajar. Começou há quatro meses no Egipto, circulou pelo Médio Oriente, e veio até à Índia. Conheceu a israelita no Rajasthan há várias semanas e encontraram-se mais ou menos por acaso de novo no Sikkim. Está feliz e ansiosa pelo regresso a casa dentro de duas semanas, e pelo sushi que vai poder comer! Costuma praticar meditação. Fuma marijuana (mas não tabaco) quando se aborrece.
A israelita concluiu o mestrado em Espiritualidades Hindu e Budista Indianas (ou algo parecido) e decidiu viajar durante um ano. Apesar de já ter viajado por seis meses na Índia quando terminou a licenciatura, decidiu voltar. Iniciou a viagem em Janeiro e vai ficar até Julho, quando o visto caduca. Não sabe ainda para onde irá a seguir: Sri Lanka? Birmânia? Vietname, Tailândia e arredores? Prefere viajar sozinha, independente, mais aberta aos outros, por isso acaba por estar sempre acompanhada pelas “pessoas maravilhosas que vai conhecendo”. Gosta de parar de vez em quando por mais tempo em alguns lugares, como fez por um mês em Varanasi (“às vezes precisamos de mais tempo para ‘entrar’ num lugar”). É professora de ioga, mas não é muito disciplinada na prática em viagem. Medita só de vez em quando. Não fuma, não bebe.
O italiano viaja há quatro meses e vai regressar a casa dentro de duas semanas. A tempo de voltar ao seu emprego sazonal, prestando serviços a iates numa marina no Adriático (no nordeste da bota), dando aulas de vela, velejando e apanhando sol... e poupando uns trocos para mais uma viagem no próximo Inverno. Começou a viagem em Katmandu, para onde voou com a sua bicicleta (comprada há uns anos numa viagem no norte da Tailândia). Pedalou pelo Nepal, tentou sem êxito entrar no Tibete, e depois veio para a Índia. É um especialista em viajar leve: ao sair de Itália a bagagem cumpria o limite de 27 kgs, incluindo 13 ou 14 kgs da bicicleta e roupa para todos os climas (que vai tirando de uma mochila digna do Sport Billy). Fala apaixonadamente das suas aventuras de bicicleta, diz que lembra cada 10 metros da estrada, mas da próxima vez quer viajar de moto (“de bicicleta é muito duro!”; e realmente no Sikkim é só montes e vales...). Como bom italiano, sente tudo com muita emoção, tem um humor bastante volátil. Pratica meditação e ioga todos os dias, com disciplina espartana: é o primeiro a acordar, pelas cinco da manhã, para ter um período de sossego. Apesar do estilo de vida limpo associado à meditação Vipassana que pratica, é adepto de marijuana.
O português está há seis meses na Índia, mas a trabalhar. Antes da Índia viveu três anos na América Latina. Acaba de se “reformar” de um emprego demasiado bem pago como consultor. Diz que poupou para viver bastantes anos sem salário e procura actividades que o apaixonem realmente, que não só lhe dêem satisfação nas interacções com as pessoas mas também tenham missões que o preencham. Não gosta de fazer viagens de lazer muito longas – prefere viajar para trabalhar em novos lugares. Veio para Sikkim por duas semanas “desintoxicar-se” do trabalho e depois vai para Singapura por uns meses, sem planos. Não fuma, não bebe. É desportista, viciado em corrida. Já experimentou meditar, mas o principal resultado foi descobrir uma técnica para adormecer rapidamente. Pensa fazer um curso de meditação agora que terá mais tempo livre.
O mundo é maravilhosamente aleatório. A vida cheia de boas surpresas. Cinco viajantes solitários, quatro deles de longo prazo. Dois trabalhadores sazonais, dois desempregados e um reformado. Dois meditadores e dois iniciantes. Três fumadores de drogas leves, dois limpos. Um praticante de ioga e uma professora. Boas energias, alegria, espiritualismo, abertura ao próximo, tolerância. Ao segundo dia pareciam amigos de longa data. No último dia construíram um monumento à amizade e despediram-se “até logo”.