quinta-feira, 26 de março de 2009

Aula de felicidade

“Mas quando tiver 60 ou 70 anos, vai agarrar-se a quê?”, perguntou-me, expressivo, um dos alunos das minhas primeiras aulas de “Introdução à Felicidade”.

Não sei se consegui perceber exactamente a pergunta. Suspeito que estávamos a falar línguas diferentes. Foi fácil perceber que “60 ou 70 anos” era para mim sinónimo de “80 ou 90 anos”: bastante idoso, com prováveis limitações físicas e possivelmente mentais. Já o “agarrar a quê” era um pouco mais complicado. Não pude deixar de imaginar um náufrago abraçado à tábua de salvação. Porque é que eu me haveria de agarrar a alguma coisa? Se tivesse passado 80 anos sem me agarrar a nada, o que é que mudaria de repente? Ou talvez a ideia fosse que ao longo da vida nos vamos agarrando a coisas diferentes? Ou seria a grande pergunta – “qual é o sentido da vida?” – num formato alternativo?



foto: Manuel Almeida/Lusa


Uma inconvencional professora de Filosofia convidou-me a ir falar aos seus alunos. O convite pareceu-me muito interessante, talvez até por ter alguma dificuldade em perceber concretamente de que é que ela queria que eu fosse falar. Sobre a minha vida? Porque é que haveria de ser interessante para eles? Finalmente percebi que o tema era o mais importante das nossas vidas e o meu preferido: não dinheiro, nem sexo, nem mesmo futebol, mas sim felicidade. E aceitei o desafio de ir falar a três turmas do 10º ano.

Em cada turma, comecei por perguntar quem se considerava feliz. Os primeiros braços ergueram-se timidamente, mas rapidamente quase todos os alunos reconheceram a sua felicidade (e quem não levantou o braço talvez não seja infeliz – talvez só tenha achado a pergunta demasiado invasiva, ou impertinente, ou surpreendente, e não tenha respondido).

Em seguida, propus um exercício de brainstorming para listar os factores que geram felicidade (e depois os que geram infelicidade – tipicamente a negação dos anteriores e por isso uma boa forma de identificar mais factores de felicidade). Achei interessante como o resultado deste exercício foi muito semelhante nas três turmas. Isso sugere, nesta minúscula amostra da humanidade de evidente irrelevância estatística (alunos da mesma escola, níveis socioeconómicos semelhantes...), que talvez todos conheçamos bastante bem e partilhemos os principais factores que influenciam a felicidade.

  • Estar bem com a família

  • Estar bem comigo

  • Estar bem com os outros

  • Estar bem com Deus

  • Gostar do que faço (ou seria “fazer o que gosto”?)

  • Amizade

  • Saúde

  • Realização

  • Sucesso

  • Arte, cultura, música

  • Liberdade

  • Justiça

  • Viajar

  • Desporto

  • Benfica

  • Álcool

(Esta lista reflecte a minha memória imperfeita dos factores mencionados e da frequência e ordem de menção – os primeiros factores terão sido mencionados nas três turmas, os últimos apenas numa; se alguém recordar outros factores, agradeço que inclua nos comentários.)


Curiosamente, ninguém mencionou dinheiro (a não ser numa das turmas, depois de eu ter chamado a atenção para a falta). Pode ter sido por inibição, para não parecer muito materialista. Ou também porque todos tinham provavelmente (ao contrário de grupos mais desfavorecidos) necessidades básicas de alimentação, habitação, saúde, educação, etc., bem supridas. Mas também pode significar que, na verdade, achamos ou sabemos (pelo menos aos 15 anos) que o dinheiro não é fundamental para a felicidade. Espantoso como uns anos mais tarde nos vemos tão facilmente a tomar decisões que não parecem nada coerentes com essa convicção. Quem terá razão? Eu aos 15 anos, ou eu aos 30 anos? Ou ambos?

Em duas turmas pediram-me no final para comentar os factores listados. Exceptuando os dois últimos, todos me pareceram importantes, mas poucos essenciais. Eu diria que os quatro primeiros (“Estar bem com...”) são praticamente sinónimos de “ser feliz”. Provavelmente só não são absolutos, essenciais, em situações específicas:

  • Alguém sem família, ou cuja família o repudiou, não pode “estar bem com a família” mas pode ser feliz

  • Um doente mental, por exemplo com transtorno dissociativo de identidade, pode ter dificuldades em “estar bem com ele próprio” mas pode ser feliz

  • Um eremita não pode “estar bem com os outros” (porque simplesmente não está com eles) mas pode ser feliz

  • Um ateu não pode “estar bem com Deus” (pelo menos não na sua concepção do mundo) mas pode ser feliz

Ao analisar a lista enquanto escrevo, adicionaria “estar bem com o universo”. Talvez seja sinónimo de “estar bem com Deus” para um crente, mas torna mais explícita a importância de estar bem, em equilíbrio, com o mundo, a natureza, os animais, as plantas, o mar, o ar, etc. (como seres humanos naturalmente antropocêntricos sofremos de agudas miopia e amnésia que nos levam a desvalorizar e desrespeitar tudo o resto).

Os restantes factores (que não começam com “estar bem...”) podem deixar-me mais ou menos alegre, mais ou menos satisfeito, mais ou menos confortável, mas não são essenciais – são paliativos. Se eu não for apegado a eles, posso ser feliz mesmo na sua ausência. Se eu sentir que preciso desses factores, estou a deixar a minha felicidade “refém” deles. Será que não posso ser feliz se tiver de fazer algo de que não gosto, se os amigos me rejeitarem, se estiver doente, se não me realizar, se não tiver sucesso, se não tiver acesso a arte, se não puder fazer o que quero, se sofrer uma injustiça, se não viajar, se não fizer desporto, se o Benfica perder, se não puder beber? Posso e devo ser feliz! “Basta” querer!

Depois de aquecermos os neurónios com a discussão sobre o que gera felicidade, descrevi à turma o meu percurso desde o momento em que estava sentado, como eles, numa sala de aula do 10º ano até ao meu estado actual, de reformado aos 33 anos. Percorri as principais decisões da última metade da minha vida, esperando que tenha ficado claro que não ambiciono seguir o que convencionalmente se chama uma “carreira” e que quero ser feliz (não querendo dizer que sejam opções incompatíveis). Concluí resumindo quatro princípios que me têm ajudado a viver melhor e a ser feliz:

1. É preciso manter equilíbrio entre as quatro dimensões da vida: física, mental, emocional e espiritual (acho que estas quatro englobam tudo o que é importante – por favor avisem-me se estiver a esquecer algo fundamental!)

2. Não há uma fórmula única para viver, para ser feliz: o que funciona para mim não necessariamente funciona para ti; e o que funciona para mim hoje talvez não funcione amanhã – é fundamental saber aceitar as diferenças do outro e as mudanças em mim próprio (o equilíbrio entre dimensões da vida varia entre pessoas e ao longo do tempo)

3. A vida vive-se no presente, aqui e agora: é fácil andar distraído sempre a planear o futuro ou a avaliar o passado; ao longo do tempo tenho procurado aprender (e tenho muuuuito a aprender) a ser cada vez mais consciente, mais atento, mais focado no presente, a reparar no aqui e agora, procurando evitar que a vida me passe ao lado

4. Equanimidade é uma capacidade crítica (já referida em “A arte de viver”): saber aceitar com serenidade as vicissitudes da vida, o positivo e o negativo, o bom e o menos bom; equanimidade bem desenvolvida (tarefa interminável!) permite-me deixar de ter a felicidade refém de relações, de bens materiais, de acontecimentos que não controlo

No final houve uns minutos para perguntas e respostas. Foi interessante observar graus variáveis de interesse entre turmas, provavelmente associados a diferentes combinações de cepticismo e aceitação. As perguntas foram todas muito pertinentes. A minha favorita: “Mas em algum momento é preciso assentar, ter um emprego, uma família... não?” Possivelmente aquilo que eu perguntaria a mim próprio se, a la Regresso ao Futuro, tivesse ido falar à minha própria turma do 10º ano? Se bem me recordo, na altura tinha a ideia de que tinha de definir o que queria ser quando fosse grande, e que aos 33 anos (idade avançadíssima – não admira que alguns alunos tenham usado o vocativo “o senhor” ao falar comigo) teria um emprego estável, uma casa, um carro, uma esposa e provavelmente vários filhos. A julgar por estes indicadores, sou um completo falhado! Não me consigo imaginar num emprego estável, não vejo necessidade de comprar uma casa (pelo menos enquanto continuar nómada), evitarei comprar um carro a todo o custo e não me atrai a ideia de procriar. Mas não sou apegado a qualquer uma destas ideias: pode ser que em algum momento me faça sentido assentar, ter um emprego, uma família... mas isso é muito diferente de acreditar que a minha vida tem necessariamente de passar por aí.


E o que é que respondi ao rapaz que me perguntava a que é que me agarraria quando fosse idoso? Reconheci que a dimensão emocional da minha vida estará (se chegar a essa idade) provavelmente debilitada (especialmente se não procriar), com muitos familiares e amigos falecidos nessa altura (e muitos que não saberão como interagir comigo...), que também estarei limitado física e mentalmente (o que pode afectar a dimensão espiritual, tanto no sentido de a enfraquecer como no de a fortalecer)... mas se for capaz de (equanimemente) aceitar a minha condição (e viver no presente), porque é que terei de me agarrar a alguma coisa?

Não nos faria mal uma dose de sabedoria budista: não serão exactamente os apegos – a tendência a nos agarrarmos a coisas, sensações, relações, situações, ídolos, santos, deuses, etc. – que geram sofrimento e infelicidade?


Obrigado, Joana, pelo convite e aos alunos pelas excelentes discussões! Desculpem se não consegui ser totalmente claro, coerente, relevante, interessante, entusiasmante... Espero que pelo menos vos tenha deixado a pensar.

Sejam felizes e espalhem felicidade!

3 comentários:

  1. Não podia deixar de comentar este teu post. Principalmente por uma palavra que utilizaste e que, na minha opinião, não foi bem aplicada: paliativos. Em saúde, os 4 pilares dos cuidados paliativos (associados aos cuidados em final de vida mas, nem por isso, acertadamente), e onde a sua definição assenta são:
    1- controlo de sintomas (dor, vómitos, demência, agitação, etc; sintomas que não deixam a pessoa estar atenta ao mundo exterior e em paz consigo própria e com os outros),
    2- o trabalho em equipa,
    3- o apoio à família
    4- e, transversalmente a estes três, a C-O-M-U-N-I-C-A-Ç-Ã-O.
    Paliativos não é algo que nos deixa mais ou menos contentes, mais ou menos felizes, é algo que nos deveria acompanhar toda a vida no sentido em que, se algo transtornar estes 4 pilares, não conseguiremos ser felizes, não teremos nada a que nos agarrar. E quando digo agarrar (ao contrário do aluno que descreves) não quero dizer algo mais material, mais palpável. Refiro-me a algo que não se agarra estritamente falando mas que sem ela nada fará sentido: a esperança. Paliativos não é mais nem menos, é um meio de podermos atingir o tal equilíbrio a que te referes entre o físico, o emocional, mental e espiritual (acresecentaria o cultural e o social), que resultará numa maior ou menor felicidade. =)
    "Ser" paliativo é um dom...
    Parabéns pela aula. De certeza que os conseguiste marcar de alguma forma. =)

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  2. Obrigada por este artigo, Nuno!
    E, sobretudo, obrigada pelas aulas. Foram mesmo excelentes ocasiões para abanar preconceitos e ideias feitas!
    Foi um privilégio para os alunos e a professora....

    Joana

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  3. Excelente artigo.
    Encorajado pelo convite, adicionaria outra necessidade de equilibrio, o Social. Para ser feliz devemos interagir com as pessoas, aprender e ensinar, deixar marcas e "ser marcado". Ao mesmo tempo ser feliz requer este estar bem consigo mesmo, nestas viagens interiores.

    Parabens pela aula! Alguns aos 33 vao lembrar deste dia aos 15.

    abcs

    Alieksiei

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