domingo, 20 de junho de 2010

Maratona de Dili

Fiquei em 9º lugar na maratona de Dili - a primeiríssima no jovem Timor-Leste – com o tempo final de 3h08’14”!! Resultados completos aqui.

foto: Luis Candeias



Preparação

Findas as seis semanas necessárias para soldar o mindinho partido a meio de Fevereiro, tinha 12 semanas para treinar para a maratona de Dili - já estava atrasado! Aumentei rapidamente (com maior risco de lesões, que felizmente não aconteceram – obrigado, corpo!) a duração do treino longo semanal. O corpo reagiu bem e em três semanas comecei a correr duas ou mais horas uma vez por semana. Ainda assim, treinei 25% menos kms (ou tempo) que para a abortada maratona de Hong Kong (HKG, em vermelho no gráfico).



A maratona vertical implicou uns treinos de corrida mais leves, para não assassinar as pernas. O esforço diferente de subir escadas acabou por me deixar com umas dorzinhas no tornozelo esquerdo e no joelho direito – alarmes de lesão! Por isso, decidi descansar nas últimas duas semanas antes da maratona como nunca tinha descansado antes para uma maratona.

Na véspera da prova parecia ter conseguido o objectivo de começar os 42 km sem dores nenhumas. Não tinha corrido os kms todos que teria gostado, mas estava confiante na capacidade cardiovascular e muscular de completar a maratona. Só alguma lesão poderia trazer problemas.


Objectivos

Objectivo principal: como sempre, curtir a prova (sim, é possível curtir uma maratona! Ok, talvez não tanto os kms finais...), os outros atletas, o público, Dili, as memórias dos bons tempos passados ali, as emoções de uma infância e juventude plena de causas timorenses... E, como sempre, curtir a prova também passava por fazê-la o mais rapidamente possível e ficar o mais bem classificado possível :)

Objectivos absolutos (i.e., mais ou menos dentro do meu controlo): Visto que a minha preparação tinha sido mais curta que o ideal e que a maratona vertical me tinha deixado com umas dorzinhas a ameaçar lesão, desta vez não me atrevi a fazer estimativas de passagens ao segundo, como fiz para Mumbai e Nova Iorque em 2008. Senti-me em condições de fazer os 42,195 km num tempo entre 3h05’ e 3’20” (o meu pior tempo até ao momento, feito em Mumbai).

Objectivos relativos: Terminar entre os 100 primeiros (pois suspeitava que não haveria mais atletas inscritos na maratona), com esperança de poder ficar entre os 10 primeiros. E quem sabe não seria possível um lugar com direito a prize money (5 primeiros), pódio, ou até ganhar – dependendo da qualidade dos participantes?


Philimon

Na véspera da maratona, ao embarcar (ou mais correctamente, emavionar) no voo Singapura-Dili perdi logo as esperanças de ser o vencedor da prova: lá estava, (já) bem sorridente, o vencedor: um africano esguio com ar de corredor rápido.

Descobri no dia seguinte que era o Philimon Rotich, queniano (de onde mais?) de 29 anos (27 segundo o passaporte, diz ele... o que me deixa a pensar sobre as idades reais de alguns atletas em campeonatos juniores internacionais...).

Segundo me contou, estava ele no Quénia a passear pela Internet à procura de maratonas para correr quando encontrou a de Dili. Viu prize money razoável para o primeiro classificado (5.000 dólares) e grandes possibilidades de ganhar por ser uma maratona pouco conhecida. O Philimon vive de corridas e agricultura. Tem uma quinta comprada com o prize money (20.000 dólares) da sua vitória na única maratona anterior, há uns anos na Itália. Vendeu um animal da quinta para ajudar a pagar os 1.600 dólares da viagem (bem baratinha, eu diria – de fazer inveja a quem quer viajar de Lisboa a Dili; e o animal deveria ser bem valioso, tenho de investigar a espécie e raça!) e pôs-se a caminho. Três dias de viagem, de Eldoret a Nairobi, mais todos os voos e escalas: Nairobi-Istambul-Singapura-Dili.

Reza a lenda* que ao chegar a Dili ele não tinha dinheiro para pagar o visto de entrada (30 dólares). Parece-me mais razoável acreditar que ele não tinha dólares americanos com ele naquele momento (apesar de não parecer muito sensato da parte dele, já que o dólar americano não é propriamente uma moeda rara e difícil de obter). Acho difícil acreditar que alguém viaja do Quénia até Timor-Leste e não tem dinheiro (“penniless”, segundo os media). O Philimon diz que o presidente Ramos-Horta (que, segundo as minhas fontes fidedignas, estava no aeroporto naquele momento, foi avisado da situação e decidiu ajudar o atleta) o convidou para ficar na casa dele durante os três dias em Dili.

No dia seguinte, como previsto, Philimon ganhou a maratona, com o modesto tempo de 2h34’57”, só um minuto menos que o segundo classificado, o timorense Augusto Soares. Queixou-se bastante do calor, mas suspeito que na segunda volta (eram duas voltas de meia-maratona) ele foi a controlar, vendo que não havia forte concorrência (diz que passou a 1h07’ na primeira volta, o que implica ter feito 1h27’ na segunda... não muito melhor do que os meus 1h33’!). Acredito que se tivesse havido necessidade de um sprint final ele teria bastantes energias para investir ainda.

foto: AFP Photo/Mario Jonny Dos Santos (obtida aqui)



O prize money para o vencedor da maratona de Dili do próximo ano (18 de Junho de 2011, segundo anunciado) foi triplicado para 15.000 dólares e o Philimon já disse que vai voltar, desta vez mais preparado para enfrentar o calor (e, digo eu, a concorrência provavelmente muito mais forte atraída pelo apetecível prémio!).

foto: Elias Friedhelm



Entretanto o presidente Ramos-Horta decidiu convidar o Philimon para voltar a Timor-Leste em Setembro, para treinar com os atletas timorenses e partilhar planos e dicas de treinos. Já combinámos provavelmente encontrar-nos quando ele fizer escala em Singapura a caminho de Dili.


Rosa Mota

Eu nunca treino na véspera de uma prova minimamente importante. Nunca. E não estou a ver quem me poderia convencer a fazer de outra forma. Não estava a ver. Até ser convidado para ir treinar... com a Rosa Mota.

Que corredor poderia recusar tal convite? Não seria eu! Nem se no dia seguinte fosse correr a maratona olímpica com ambição à medalha de ouro (talvez nessa situação fosse ainda mais apropriado aceitar o convite!).

A Rosa Mota é alguém muito especial para mim e provavelmente para a maioria dos portugueses (acima dos 25 anos?). E não só: também dos timorenses, dos brasileiros (ganhou a Corrida de São Silvestre de São Paulo entre 1981 e 1986), dos japoneses... E tantos outros (existe até uma banda Rosa Mota) que admiram, ainda mais que os inigualáveis êxitos na maratona, a sua capacidade de espalhar alegria e inspirar.

A Rosa solidariamente teve em conta que eu ia correr a maratona no dia seguinte (as restantes quatro pessoas no treino iam fazer os 5 km) e decidiu que só caminharíamos da praia da Areia Branca até ao Cristo-Rei ali a 2 ou 3 km. Chegados à base do Cristo, comentou que subir escadas (até ao Cristo lá no alto) não era recomendável na véspera de uma maratona e decidiu que voltaríamos para a Areia Branca. Foi um passeio muito agradável que não desgastou minimamente as minhas capacidades físicas e alimentou claramente as psíquicas, graças às energias positivas do grupo e em especial da Rosa, e também ao espectacular cenário de pôr-do-sol e ao tempo relativamente fresco – passava até uma aragem refrescante (provavelmente “fria” para os locais).

foto: Luis Candeias




Para quem não tem visto a Rosa Mota, basta procurar na memória. Está exactamente na mesma desde este evento que parece que foi ontem:



Sério. A mesmíssima estrutura física, o mesmo corte de cabelo, o mesmo sorriso aberto, generoso, sem filtros, a mesma energia física e psíquica, a mesma passada certinha alimentada a pilhas de longa duração, a mesma competitividade, reagindo automaticamente a qualquer ameaça de ultrapassagem mesmo em treino... Mas também o discernimento para saber quando aceitar perder: deixou o Ramos-Horta ganhar-lhe ao sprint nos metros finais da prova de 5 km.

foto: Elias Friedhelm



Atenção a um detalhe importante no vídeo: a Rosa Mota também usa calções vermelhos!! Isso recorda-me do maior elogio que já me fizeram como atleta. Aconteceu em Viana do Castelo há uns meses. Manhã de Dezembro, frio abaixo dos 10º Celsius. Corria eu pelas ruas pedonais do lindíssimo centro da cidade, com os meus famosos calções vermelhos e uma t-shirt de manga comprida. Ao aproximar-me de um grupo de quatro ou cinco senhoras, notei que olhavam para mim e faziam comentários, provavelmente sobre o frio e a minha escassa roupa. Quando passei por elas só ouvi “Ah, a Rosa Mota era a mesma coisa!” Eu e a Rosa Mota a mesma coisa?!!?! O delírio!!!!!!! Achei o comentário demasiado generoso mas claro que gostei de ser comparado a tão ilustre, dedicada e bem sucedida maratonista e pessoa!

Melhor ainda só ter tido a honra de ser chamado “o atleta” pela própria Rosa Mota neste fim-de-semana!


Antes da partida

Pelas 8 da noite comi uma massa bem simples (trazida de Singapura assim garantindo controlo total dos alimentos) para carregar-me de energias. Preparei as coisas para a prova e deitei-me pelas 10 horas. Antes de adormecer reflecti e visualizei o que faria desta maratona uma excelente maratona. Como a curtiria com todos os sentidos, com todo o meu ser (corpo, mente, coração e espírito). Qual o ritmo certo a imprimir, como gerir a energia e os abastecimentos de líquidos e de gel energético. Tudo a postos!

5:00 da manhã. Acordei de uma noite de sono curto, em que acordei muitas vezes, talvez devido ao barulho de uma festa nocturna próxima, o ruído do frigorífico no quarto, alguma ponta de ansiedade pelo excelente dia que me esperava... Cortei o jejum com duas bananas e uma barra de cereais. Despejei líquidos e sólidos para ir o mais leve possível e prevenir dores abdominais.

5:50 da manhã. Saí da “Casa Minha” (onde fiquei hospedado). Noite escura. Temperatura simpática, fresquinha. Galos a cantar.

Para aquecimento, e como meio de transporte, corri devagar (e com atenção para não tropeçar em nada no escuro) os 2 km até ao Palácio do Governo, onde seria a partida e a chegada. Só comecei a suar um pouco ao chegar lá. Temperatura animadora!

foto: Elias Friedhelm
(Nota: Os mais observadores terão reparado que não usei os meus calções vermelhos nesta prova; a razão é prática - estes calções pretos têm um bolso simpático onde posso levar gel energético)



Ao chegar veio logo falar-me o Philimon, lembrando que nos tínhamos visto no avião na véspera: “Olá, como estás?” Falámos dos tempos esperados para a prova e confirmámos que não entraríamos em competição directa: ele esperava fazer algo próximo de 2h20min. Ele estava com sede e partilhei um pouco da água que tinha trazido comigo. Recordando uma corrida de “10” km que fiz em Dili em 2003, lembrei-me de lhe recomendar que tivesse cuidado para não se enganar no percurso, já que muito provavelmente ele lideraria a prova e talvez não estivesse super bem indicado.

Sentia algum sono, devido à madrugada e a ter dormido pouco nos dias anteriores, com jet lag por ter voltado da Europa recentemente. Mas sentia-me muito bem e estava a curtir muito o ambiente, as boas energias no ar. Tinha um sentimento de que ia ser uma grande corrida! :)

Despejei uns últimos líquidos e tomei um gel energético. Vamos lá!


Partida

Claro que decidi partir ao lado do Philimon. Se não o fizesse aqui, não sei quando seria a próxima oportunidade de partir ao lado do vencedor de uma maratona! E quem sabe ele não me passaria algum talento corredor por osmose?

O presidente Ramos-Horta deu a partida com uma buzina prolongada. E durante umas gloriosas décimas de segundo fui o líder da primeiríssima maratona internacional de Dili, ao ser o primeiro a reagir à buzina!

Mas logo o Philimon e uma tropa de entusiasmados timorenses se lançaram para a frente num ritmo claramente acima do que eu queria imprimir à corrida. Calculei que ficaram à minha frente naquele arranque pelo menos 30 atletas, talvez 40. Pensei que veria muitos “morrer” e ficar para trás nos poucos kms seguintes, mas, para minha surpresa, isso não aconteceu – aquele pessoal aguentou-se muito bem!

Segundo me comentou depois a Lucie, vencedora feminina, as atletas timorenses picaram-se com ela nos kms iniciais: cada vez que ela começava a passá-las, elas arrancavam para a frente. Mas não foram só elas que começaram rápido de mais: a própria Lucie passou a 1h26’ na meia maratona e terminou em 3h03’ – ou seja, a segunda metade foi bastante mais lenta, em 1h37’. O Philimon fez 1h07’ + 1h27’...

foto: Elias Friedhelm



Eu próprio, pensando que tinha arrancado num ritmo bem controlado, passei no primeiro km em 4’16”, em vez dos desejados 4’30”/km. Bom saber que conseguia correr a 4’16” sem qualquer esforço! Mas logo levantei o pé do acelerador e acertei o velocímetro no km 2.


Primeira meia-maratona

Corri ao lado de outro atleta (Michael Parr, um “ocidental”) do km 3 até ao 16. Íamos num ritmo certíssimo de 4’30”/km (perfeito para terminar os 42 km em 3h10’) que se sentia bastante fácil (como teria de ser se ambicionávamos correr 42 km), passando um ou outro atleta que tinha começado rápido de mais.



O piso era bom, de alcatrão em bastante bom estado. A cada 3 kms havia um posto de abastecimento muito apreciado, com água e bebida energética. Esforcei-me por beber sempre alguma coisa em cada posto, sabendo que ia perder muita água naquelas 3 horas.

Passámos por vários bairros nos arredores de Dili. As pessoas tinham saído à rua e observavam – a maioria em silêncio – os loucos corredores (quase ninguém imaginava que estávamos a correr 42 km, suspeito). Aqui e ali uns gritos de incentivo ou de gozação. Ouvi muitas vezes “malae” (estrangeiro), sabendo que falavam de mim e do meu companheiro de ritmo. Os miúdos pequenos eram geralmente os mais expressivos. E eu ia respondendo com “Bom dia” e “Obrigado”.

Passei por vários amigos e conhecidos timorenses, líderes das federações desportivas, que obviamente não me tinham visto até eu gritar “Olá João/Filomeno/Carlos/Victor!”. Divertido e energizante encontrar gente conhecida de forma inesperada!

Na segunda principal subida do percurso (nenhuma delas muito íngreme) o Michael ficou para trás (acabou em 3h27’). Arranjei então companhia de um dos muitos timorenses de calções verdes com listras amarelas (das Falintil-Forças de Defesa de Timor Leste, descobri mais tarde). Juntos ultrapassámos um grupo de seis atletas: cinco rapazes que pareciam acompanhar uma rapariga. Pelas minhas contas ainda havia pelo menos 20 atletas à nossa frente.

Passámos na meia-maratona num tempo perfeito para as minhas ambições: 1h34’37".


Segunda meia-maratona

Ao passar na meia-maratona sentia-me muito bem em termos energéticos e cardiovasculares. Mas estava a sentir bastante os tornozelos e as pernas e comecei a pensar que poderiam começar a doer “demasiado” (seja lá isso o que for...). Acho que foi a primeira vez que passei a metade da maratona e fiquei a pensar que 42 são muitos kms! (Em Nova Iorque eram “só” 26 milhas – e o número mais baixo ajuda realmente a encarar a corrida!) Estava difícil de imaginar manter o ritmo na segunda volta, e por isso decidi não pensar no assunto e simplesmente continuar a correr. As boas notícias eram que o temido calor não se fazia sentir: estava quente, mas corria uma brisa suave até refrescante – algo que eu nunca tinha sentido em Dili antes!

Felizmente, em parte provavelmente por ter entrado em algum tipo de transe, de estado alterado de consciência (sempre bastante lúcido – não se preocupem, pais!), os kms começaram a passar muito mais rapidamente. Psicologicamente, claro: na verdade o relógio continuava a marcar kms próximos dos 4’30”, por vezes um pouco abaixo. Excelente!

Rapidamente (bom, uns 35 minutos depois) cheguei ao km 29 e o ritmo continuava o mesmo! Até houve ali uns kms mais rápidos, próximos dos 4’15”/km!).

Nota: Entre os km 5 e 18 não pude marcar as passagens por km (não estavam bem assinalados), por isso o gráfico mostra o ritmo médio nesses 13 kms



Então comecei a contagem decrescente: 13 km fazem-se em 1 hora... 12 km...11... 10... Depois de passar a primeira timorense, ali pelo km 34, nunca mais vi outros atleta. Aliás, nos kms finais não havia nenhum atleta 1 km à minha frente nem 1 km atrás. Estava completamente em contra-relógio individual.

Pelo km 35 um grupo de miúdos deve ter lido a bulicena sobre a maratona de Nova Iorque e decidiu reproduzir o túnel de energia! Fizeram uma barulheira espectacular que me induziu excelentes descargas eléctricas pela pele e espinha dorsal. Mas a maioria das pessoas que se tinham juntado à volta da estrada olhavam sem se manifestar. Ainda assim, melhor do que ruas totalmente desertas – obrigado!


Meta

Pela segunda vez, depois da maratona de Nova Iorque, não houve muro! A estratégia de abastecimento de bebida energética a cada 3 km e gel energético a cada 12 km (três em total) funcionou muito bem!

Mas começava a sentir vontade de andar... de chegar à meta e finalmente parar de massacrar as pernas e tornozelos! Os quatro kms finais (felizmente em descida e planos) custaram bastante a passar. Pareciam mais compridos que na (exactamente igual) volta anterior. Nada como viver o presente, com equanimidade, e perceber que continuava a avançar ao ritmo de sempre e mais cedo ou mais tarde a meta passaria por mim.

foto: Luis Candeias



A menos de 1 km da meta, já na marginal junto ao mar, vinha na direcção contrária pessoal que tinha acabado a meia-maratona e pararam para me aplaudir e incentivar – obrigado!! Já vinha ali a curva antes da meta! Como nos jogos de computador, as baterias recarregaram-se com a perspectiva de estar a acabar e com a energia emanada pelos espectadores, cada vez mais, e mais animados e animadores! Recta final, meta à vista. Olhei o relógio junto à linha de chegada: acabava de marcar 3:08:00. Multidão a aplaudir. Vozes familiares a darem uma força especial para terminar forte. Agradeci. Acelerei o que as pernas permitiram. Curti o momento. Cruzei a meta. Já está!! Finalmente posso andar. :)

foto: Luis Candeias




Rescaldo em família

Participar numa prova com poucos atletas (79 na maratona) tem várias vantagens para além da garantia de um lugar nos top 100. O melhor de tudo é o ambiente familiar e o privilégio de conhecer e falar com toda a gente, especialmente num país relativamente pequeno (1 milhão de habitantes) como Timor-Leste.

A Rosa Mota veio procurar-me depois da prova. Elogiou o tempo final, achando que 3h08’ aqui valiam até mais que as 2h57’ de Nova Iorque (dadas as diferenças de temperaturas). Falámos sobre os diferentes níveis de “estragos” causados por uma maratona e os tempos de recuperação variáveis entre atletas. Ela podia treinar normalmente no dia seguinte a uma maratona. Eu tenho de dar uns dias de descanso às pernas para se reconstruírem.

Simpaticamente, o embaixador de Portugal, Luis Barreira de Sousa, também me felicitou e se interessou pelos meus projectos desportivos e profissionais. Tive até oportunidade de trocar umas impressões com o presidente Ramos-Horta sobre o desenvolvimento desportivo em Timor-Leste.

foto: Gaia Discovery



Na entrega de prémios estive na conversa com o Philimon [acabou de me ocorrer: será que ele conhece Mortadelo y Filemón??] e foi aí que fiquei a saber um pouco mais sobre a história dele.

foto: Gaia Discovery



E mesmo à minha frente estava sentado um rapaz timorense cuja cara me era familiar... Cumprimentou-me e lembrou-me que eu lhe tinha dado uma t-shirt há uns anos. Finalmente, ao vasculhar em fotos de 2003, lembrei a história: era o Calisto da Costa - o melhor corredor timorense aquando da minha primeira visita (tinha participado nos Jogos Olímpicos de Sydney em 2000, completando a maratona no respeitável tempo de 2h33'11"). Ele ia ser entrevistado para uma reportagem televisiva e, como não tinha uma camisola de corrida, eu ofereci-lhe a minha, que tinha sido da selecção nacional de pentatlo uns anos antes (e estava em bom estado porque praticamente eu só a tinha usado em provas internacionais – sério!). Ele tem excelente memória!




Alcino

Mas o momento alto da entrega de prémios foi quando Ramos-Horta chamou o “verdadeiro herói”, (palavras dele) para ser homenageado. Ninguém menos que o mais famoso atleta paralímpico timorense: Alcino Pereira.

foto: Elias Friedhelm



Descobri então que ele tinha feito a maratona completa! 42 km. Qua-ren-ta e dois qui-ló-me-tros. Quarenta e dois. 42.195 metros. 5 horas, 47 minutos e 26 segundos. Fiquei até meio envergonhado de estar orgulhoso do meu feito. O Alcino não tem a mesma facilidade de movimentos e o mesmo controlo motor que eu tenho ou que a maioria dos leitores das bulicenas têm. Mas não lhe falta força de vontade, determinação, disciplina. Provavelmente muito acima de qualquer um de nós. Desde a minha primeira missão olímpica em 2003 que conheço o Alcino e o admiro pela constância nos treinos (deve ser o único que está lá todos os dias, faça chuva, sol ou temporal), a dedicação total ao atletismo. E, ainda mais inspirador, pela boa disposição e amizade, sempre pronto para um potente aperto de mão ou um abraço apertado. Não pares, Alcino!!




A maratona de Nova Iorque foi espectacular, mas, a maratona de Dili, tão familiar, foi ainda melhor! Animação total.


Agradecimentos

À Filipa e ao Luis pelo incrível apoio logístico e moral, convívio e reportagem fotográfica.

Ao Pedro pelo convívio e marcação do excelente alojamento na Casa Minha.

À Rosa pela sempre fantástica disposição, simpatia, boas energias, conselhos sábios de milhares de kms de experiência, muita inspiração!

Aos atletas, timorenses e estrangeiros, que aceitaram o desafio!

A todos os que me apoiaram e apoiaram os outros atletas ao vivo: Maria João, Filipe, Afrânio, João, Carlos, Filomeno, Victor, e outros milhares espalhados pelas ruas de Dili e arredores.

Aos que enviaram boas energias, ondas telepáticas e palavras de apoio - família, amigos e simpatizantes!

Ao Elias e Mallika (Gaia Discovery) pelas fotos.

À Gina e todo o pessoal da Casa Minha pela simpatia, hospitalidade, excelente serviço, e pelo luxo de uma piscina óptima para arrefecer e descontrair depois da prova.

Aos organizadores e voluntários que montaram uma prova muito boa, bem organizada, um óptimo percurso (melhor só se fosse uma volta de 42 km!), bons sistemas de abastecimento e apoio médico.

Ao presidente Ramos-Horta por continuar a estimular o desporto como ferramenta de paz e desenvolvimento.



*A julgar pela quantidade de notícias que rapidamente se espalharam pela Internet fora, com informações claramente incorrectas (óptima contribuição para o meu forte cepticismo quanto ao sentido de verdade dos jornalistas – desculpem a generalização, se houver por aí algum jornalista que rigorosamente nunca “ajusta” os factos). Vejamos por exemplo esta notícia da supostamente respeitável agência noticiosa alemã, Reuters. Informações incorrectas, tanto quanto sei, e que seriam (a) tão facilmente verificáveis se o jornalista se desse ao trabalho ou (b) tão facilmente omitidas porque nem são muito relevantes (excepto talvez o facto de ele ter corrido a maratona):
- a idade do Philimon não é 33, mas sim 29 (ou quanto muito 27, segundo o passaporte...)
- o visto de entrada custa 30 dólares, e não 40
- ele participou na maratona, e não na meia-maratona
- ele obviamente não “spotted President Jose Ramos-Horta in the airport” porque claro que ele não conhece a cara do presidente. Consta que o presidente estava naquele momento no aeroporto, foi informado da situação e veio falar com o Philimon – muito mais verosímil, não?
Claro que fico a pensar se estes jornalistas são desonestos ou simplesmente ingénuos, burros ou estúpidos, e se as citações supostamente do Philimon alguma vez foram proferidas. Especialmente quando este padrão de as notícias não corresponderem aos meus conhecimentos de factos ou palavras se repete quase sempre que tenho oportunidade de ter informação em primeira mão. Para ficção e palavras bonitas posso ler romances, obrigado!

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Saramago

E no dia seguinte já não escreveu.

A morte só importa realmente a quem fica. Quem parte deixa saudades em quem lhe sobrevive. E as bulicenas estão de luto pela morte do Saramago hoje. Não por amor, nem por pena, nem particular tristeza. Afinal, nunca conheci o homem. Pelo menos não ao vivo, porque pela escrita parece-me que o conheço bastante.

As bulicenas estão de luto por motivos totalmente egoístas (aliás, como de costume - não são por exemplo as saudades sempre egoístas?): agora sei que tenho um número limitado de obras do Saramago para ler. Talvez leia ainda mais devagar as que ainda não conheço, para as fazer render e melhor saborear. E por que não reler as que li e que não recordo bem? Tenho a certeza de que continuarei a fascinar-me repetidamente pela perspicácia, conhecimento da natureza humana, análise fina da língua, da etimologia, dos significados por trás da fachada.

Fui reler o que escrevi nas bulinovas sobre o Saramago, quando estava em Timor há 7 anos. Continua a ser muito válido. Entretanto li mais uns livros e considero a escrita samaraguiana cada vez mais brilhante. Os livros do Saramago para mim dividem-se entre excelentes e absolutamente espectaculares. Não leio assim tanto, mas entre os que conheço Saramago é provavelmente o meu escritor favorito. Intermitências da Morte é certamente o livro mais divertido. Ensaio sobre a Cegueira (que costumo oferecer a quem nunca leu Saramago) é o mais... murro-no-estômago? Ensaio sobre a Lucidez é melhor que o Contra-informação como caricatura do mundo da política (nacional?) e arredores - igualzinho ao que vejo no telejornal quando passo por Portugal (não sei o que passa nos telejornais de outros países porque vejo zero televisão).

Não li o recente Caim, mas li o mais antigo Evangelho Segundo Jesus Cristo, que também provocou bastante burburinho. O que seria mesmo lindo seria o Saramago enviar de lá onde esteja (se é que "está") um post-mortem com a sua análise do mais-além. Nada que nos surpreendesse se se passasse num dos seus romances.

domingo, 23 de maio de 2010

Maratona Vertical de Singapura

Fui terceiro na Maratona Vertical Nacional de Singapura!! 63 andares, 282 metros de altura, em 10'05"!




Perguntas Frequentemente Perguntadas

O que é uma maratona vertical? 42km a subir??
Uma maratona vertical é uma prova de corrida a pé em que os atletas sobem escadas até ao topo de um edifício ou torre de altura considerável, geralmente o edifício mais alto na cidade.

Que ideia foi essa de participar numa maratona vertical??
Que pergunta complicada! Provavelmente a mesma doença crónica e grave que me leva a fazer pentatlos, triatlos, maratonas, corridas de aventura... e outras maluquices desportivas.

Mas... mas... como é que isso funciona?! Milhares de pessoas desatam a correr aos encontrões escadas acima?? Quantas mortes costumam ocorrer em cada prova??
Não, os atletas não partem todos ao mesmo tempo como costuma acontecer nas maratonas horizontais (ou pelo menos não foi assim nesta prova - foi a minha primeira, portanto não sei bem o que é habitual, mas suspeito que seja desta forma). Os atletas partem em grupos pequenos (hoje éramos 5 em cada grupo), com partidas separadas (hoje a cada 2 minutos).

Como é que se treina para uma maratona vertical??
De acordo com os princípos do treino: em especial, o princípio da especificidade sugere que é boa ideia treinar subindo escadas.


Preparação

Inscrevi-me nesta prova há uns 2 meses, quando estava a terminar de soldar o mindinho partido em Fevereiro. Como achava que ainda era boa ideia evitar calçar sapatos, decidi fazer um exercício que não mexesse muito com o mindinho: subir escadas de chinelos! Durante um par de semanas passei a quase só subir até casa (22º andar) pelas escadas. Fiquei surpreendido logo no início por nem custar tanto quanto eu esperava. Num ritmo relativamente lento (de 2 em 2 degraus) conseguia subir em 3 minutos e pouco. Poucos dias depois já conseguia subir em 2 minutos e pouco (6 a 7 segundos por andar).

O mindinho voltou a funcionar e eu voltei a correr. Nas primeiras corridas depois de 6 semanas parado os músculos das pernas ficaram bastante cansados e deixei de subir escadas para conseguir recuperar mais rapidamente. Fiz o triatlo de Singapura e depois comecei a aumentar rapidamente os kms de corrida (testando a possibilidade de correr a maratona de Dili em Junho), além de fazer um par de treinos longos de bicicleta. De novo pernas cansadas e férias de escadas. Fui 10 dias até Sydney e, entre bastante ocupado e falta de prédios altos, continuei sem treinar escadas (mas continuei a correr bastante).

Voltei a Singapura há 10 dias... e urgia subir escadas! A minha capacidade cardiovascular estava em razoável forma graças à corrida, mas o esforço muscular nas escadas é muito diferente. E não tinha grande noção do ritmo que conseguiria manter durante 63 andares. Na verdade, nem estava 100% confiante de conseguir subir 63 andares mantendo algum tipo de ritmo!

Então decidi bombar alguns treinos para o corpo e a mente se familiarizarem com o desafio de hoje. Fiz alguns treinos de repetições de escadas: subir 20 andares, descansar ao descer no elevador, subir 20 andares, descer no elevador, subir 20 andares... Sempre sem usar as mãos nem apoiadas nos joelhos nem no corrimão, para usar os músculos das pernas ao máximo. E nunca correndo: apenas andando rápido de 2 em 2 degraus, já que verifiquei que subir a correr não era sustentável.

Os dias mais puxados foram:
- 4a feira = 5 x 20 andares de manhã (2'10" em cada subida, 1'30" de descanso) + 5 x 20 andares à tarde + 60' de corrida
- 5a feira = 3 x 39 andares (4'45" em cada subida, 3' de descanso; descobri um prédio de 40 andares aqui perto! E aqui o r/c é o andar 1, daí os 39 andares)

O último treino deu-me a confiança de saber o ritmo a manter na maratona vertical, e de saber que conseguiria completar a prova sem morrer.

Já que era uma prova em que ia aumentar significativamente a minha energia potencial gravítica (E = m.g.h = energia = massa vezes aceleração gravítica vezes altura), e visto que não poderia facilmente alterar nem a aceleração gravítica nem a altura a subir, decidi minimizar a minha massa: cortei o cabelo e as unhas, fiz a barba [excelente observação, João - obrigado por lembrares!] levei os meus ténis mais leves (pensei em correr descalço, mas não sei se seria confortável) e fui à casa-de-banho várias vezes na manhã da prova largar o lastro possível.

A única outra coisa que também poderia ter feito (além de treinar mais) seria ter ido ver como eram as escadas no One Raffles Place - o prédio mais alto de Singapura. Mas não deu jeito passar lá e nem sabia se seria muito fácil ter acesso às escadas porque é um edifício de escritórios.


Execução

O plano hoje de manhã era simples: sair à frente do meu grupo (para minimizar ultrapassagens nas escadas) e entrar no ritmo dos treinos até chegar ao topo. Tinha a ambição de ficar bem classificado (tipo 15 primeiros) e estava confiante em conseguir: não acreditava que houvesse tantos loucos que além de se inscreverem nesta maluquice ainda se dessem ao trabalho de treinar para ela!

Se os andares fossem semelhantes em altura àqueles em que eu tinha treinado, o plano era completar a prova em menos de 8 minutos, talvez uns 7'30". Tinha ouvido falar de tempos abaixo dos 7 minutos para os vencedores, portanto não tinha esperança de ganhar.

Na partida coloquei-me logo à frente dos outros 3 atletas (faltou um dos 5 do meu grupo), dei uma corrida nos 20 metros até às escadas e... mãos à obra! Sim, mãos à obra: usei a mão direita para me puxar para cima com o corrimão, e a mão esquerda apoiada no joelho esquerdo para aliviar os músculos da perna.

Cometi um erro básico de principiante: comecei rápido de mais! A adrenalina já me tinha levado a lançar-me às escadas um pouco rápido, e ao sentir que um dos atletas do meu grupo se estava a aproximar acho que até acelerei um pouco. O atleta que vinha atrás rapidamente "morreu" e deixei de o ouvir. E eu rapidamente percebi o erro estúpido quando senti que a pulsação já estava acelerada e a respiração pesada como se estivesse 30 andares mais acima. Restava-me manter aquele ritmo até ao fim!

A primeira vez que olhei para a parede a ver em que andar ia, pensando que ainda não tinha passado do 10º, já ia no 15º. "Fixe! 25% da prova!"

Pouco depois havia um abastecimento de água mas eu achei que não precisava. Mas logo a seguir a boca decidiu reclamar e senti-a muito seca. Então aceitei um copo no abastecimento seguinte.

Entretanto comecei a ultrapassar alguns atletas das partidas anteriores. O mais chato da ultrapassagem era ter de largar o Santo Corrimão que tanto me ajudava na subida!

No 31º andar olhei para o relógio e tinham passado 4'30". Se mantivesse o ritmo seriam uns 9 minutos até lá acima... mas não estava a contar com os primeiros andares mais rápidos.

Reparei que os andares eram mais altos que no meu prédio: em vez de 8 passadas entre andares, eram 11,5 - ou seja, cada andar era uns 40% mais alto... o que justificava o tempo mais lento.

Andar 50! Cansado, coração bem acelerado como não tem ficado nas minhas corridas, mas confiante em que não iria "morrer". Andar 60 - o ânimo de estar quase a acabar! Mas insuficiente para acelerar. 61... 62... 63... Hei! Não acabava aqui? Afinal havia mais 1/2 andar até ao terraço. Meta à vista! 10 metros planos até à meta, que ainda consegui semi-correr... missão cumprida!


Resultados

Ao chegar sabia o tempo final pelo meu relógio, mas não fazia ideia da minha classificação. Os resultados não estavam a ser publicados em lado nenhum, e ainda faltavam partir muitos grupos.

Apreciei a magnífica vista do topo do prédio. Dá para ver toda a ilha, especialmente o centro da cidade. Espectacular. Ainda mais depois de 10 minutos da "maratona" com as paisagens mais aborrecidas que já fiz: escadas estreitas e escuras, sem qualquer vista para o exterior.

Depois meti conversa com o corredor de um braço. Estava lá em cima todo bem disposto e a distribuir boa disposição. Entre outras coisas falou-me da Maratona Vertical do Swissôtel - o hotel mais alto de Singapura (e em tempos do mundo). Provavelmente a participar em Novembro! Os dois primeiros classificam-se para a Maratona Vertical do Empire State Building!

Fui para casa sem saber a minha classificação. Disseram-me que me ligariam se tivesse ficado nos 20 primeiros. E umas horas depois ligaram-me a pedir que fosse receber os prémios pelo terceiro lugar!




Próximos degraus?

Como se pode perceber, estou com aquele entusiasmo de quem acaba de descobrir um novo mundo a explorar: as maratonas verticais. Parece que há um monte de provas destas aí pelo mundo e até um Circuito Mundial Vertical - vou prestar atenção e provavelmente fazer mais algumas. Nunca gostei de trabalho de musculação, subir escadas parece uma excelente alternativa para fortalecer as pernas!

Ser campeão mundial não parece fácil e duvido que me motive. Já percebi que o homem a abater seria o alemão Thomas Dold, que ganhou a prova do Empire State Building nos últimos 5 anos (e é também campeão e recordista mundial de "corrida para trás" - retro-corrida? retro-atletismo? - em várias distâncias).

No dia 20 de Junho correrei mais uma maratona horizontal: a primeira maratona de Dili! Quem sabe não consigo mais um excelente resultado internacional?

Entretanto vou correndo as outras corridas da vida! Vemo-nos no topo! :)

sábado, 24 de abril de 2010

Parabéns!

Parabéns é uma palavra curiosa.

Entre outras aplicações (geralmente para felicitar alguém por um esforço ou resultado), é usada habitualmente em aniversários de uma forma que me parece totalmente ilógica. Por que hei-de dar os parabéns a quem acaba de completar mais uma volta em redor do sol desde o dia em que saiu do ventre da mãe?? Qual o mérito de tal "resultado"?

Muitas pessoas até podem ter especial mérito por se terem mantido vivas - como os sobreviventes de condições de vida difíceis (p.ex., os 53% da humanidade que vive com menos de 2 dólares por dia), cataclismos, guerras, acidentes ou doenças graves que tiveram de trabalhar duro para não se apagarem ou serem apagados. Suspeito que o mérito é bastante mais discutível no caso da maioria das pessoas com quem interajo no dia-a-dia.

Por isso, há algum tempo decidi deixar de dar "parabéns" e passei a desejar "feliz dia!" (e ano e vida...). (Poderia ter simplesmente deixado de me lembrar ou de reagir a aniversários, mas continuo a achar que é uma óptima desculpa - tão boa como outra qualquer, mas particularmente eficaz - para me lembrar dos amigos e família e enviar-lhes energias positivas!)



Mas decidi investigar até que ponto não era ignorância minha estar a vetar o acesso dos parabéns aos aniversários.

Segundo o dicionário:

parabéns (plural de parabém*)
s. m. pl.
1. Felicitações, congratulações.
2. Canção de aniversário.
dar os parabéns: felicitar.
estar de parabéns: merecer felicitações.
*Nunca usei nem vi/ouvi usar no singular!

Segundo o mesmo dicionário, felicitar significa não só "dar parabéns" como também "tornar feliz". Hmmm... então talvez seja ignorância minha mesmo! Se parabéns = felicitar = tornar feliz... não é muito diferente de desejar "feliz dia/ano/vida"! Fixe!

Nestas diligências (não as "antigas carruagens públicas para transporte de passageiros com itinerário e horário fixos", mas sim "buscas, pesquisas, averiguações") descobri umas palavras "novas":

  • Prolfaças = sinónimo de parabéns!? Nunca tinha ouvido, plural ou singular. Prolfaças??!?! Será que a pessoa parabenizada (usando o verbo dos sempre criativos colegas brasileiros) não se vai sentir ofendida?? Segundo o wikcionário, "prolfaças" é a "lexicalização da frase optativa bom prol lhe faça, mediante redução e aglutinação". Portanto ou é um desejo mais capitalista (prol = proveito, lucro) ou mais procriador (prole = descendência, filhos). Nem toda a gente necessariamente gosta de dinheiro ou de expandir a espécie humana, por isso não sou fã deste estranho prolfaças.

  • Parabentear = dar os parabéns!! Afinal não são só os brasileiros que verbalizaram os desejos! O verbo existe em português de Portugal!!

Agora que já ficou toda a gente menos esclarecida, fico descansado de que até pode ser lógico dar os parabéns a alguém.

Muitos parabéns à Catarina, cujo aniversário despoletou hoje esta investigação!

domingo, 18 de abril de 2010

Salvem as baratas!

Há umas semanas fui ver “The Cove” (por acaso na véspera de o filme ganhar um Oscar) – um documentário sobre matanças de golfinhos no Japão (trailer no youtube). O filme mistura várias mensagens de uma forma que não me parece a mais eficaz (é mau capturar e matar golfinhos porque são seres inteligentes e sensíveis, é mau comer carne de golfinho porque é tóxica, os japoneses usam esquemas questionáveis para defender as suas práticas de matar baleias e golfinhos...), mas um bom resumo talvez seja: “Gostamos de golfinhos, achamos que são um ser especial, e achamos intolerável a forma como eles são capturados e mortos em Taiji (Japão).”


foto: www.thecovemovie.com



A certa altura os participantes no documentário estão a ouvir gravações de golfinhos e fazem comentários pesarosos do género “Já pensaram...? Estamos a ouvir golfinhos poucas horas antes de serem mortos...” Não pude deixar de partilhar o pesar. E de pensar, igualmente pesaroso, que o mesmo acontece quando passamos ao lado de um aviário, uma pocilga, um estábulo... e ouvimos galinhas carcarejar, porcos grunhir, vacas mugir.

Uma óptima oportunidade para questionar as minhas crenças sobre o ser humano e outros seres, e as implicações sobre como lido com o mundo à minha volta.


Salvem os humanos!

Pensar que é mais importante salvar golfinhos e baleias que outros animais porque são seres particularmente conscientes, inteligentes e sensíveis é um bom exemplo de aplicação flagrante da minha bitola antropocêntrica. Visto que considero o ser humano (mais ou menos) consciente, inteligente e sensível, tendo a acreditar:

  • Que consciência, inteligência e sensibilidade são características especiais (possivelmente de forma absoluta)

  • Que os seres que as partilham (idealmente no mesmo grau que eu) devem ser protegidos

  • E que os que não as apresentam (pelo menos não em grau que eu considere relevante) são menos... valiosos?

  • E portanto posso fazer o que quiser com eles

  • Ou, se eu for especialmente consciente, inteligente e sensível, talvez ache que os devo tratar (incluindo matar) pelo menos de forma “humana” (E será que um porco quer ser tratado de forma humana?? Não preferirá ele ser tratado de forma suína???)

  • Ou seja, quanto mais “humano” for um ser, mais merece ser bem tratado. Esta ideia está geralmente associada à crença de que o ser humano é o culminar da evolução, o ser mais “evoluído” à face da terra (e talvez no universo). Um ser superior.

Será que se aparecer na terra uma nave espacial com seres mais “evoluídos”, que demonstrem consciência, inteligência e sensibilidade super-desenvolvidas, eu vou reconhecer que eles são melhores que os humanos (mais humanos??), e portanto têm todo o direito a usar-nos e matar-nos como lhes aprouver (tal como nós, humanos, fazemos com outros seres)? E nós teremos o dever de os servir? Ou acharei, talvez, que eles são conscientes, inteligentes e sensíveis de uma forma “diferente” da nossa, portanto não humana, e – é claro – “pior”?

Consciência, inteligência e sensibilidade só são especiais porque são características que identificamos em nós próprios. Não são necessariamente especiais para outros seres. E não acredito que sejam especiais em qualquer sentido absoluto.

Infelizmente, esquecemos frequentemente que não existe só aquilo que conhecemos e podemos analisar cientificamente. Existem com certeza muitos outros fenómenos e características que desconhecemos, e por isso nem sequer temos nomes para eles nem podemos falar deles. Se conseguíssemos criar algum tipo de métrica “absoluta” (exercício totalmente teórico, admito) talvez reconhecêssemos algumas dessas características como mais importantes que consciência, inteligência e sensibilidade, ou outras geralmente associadas aos humanos.


Salvem os seres falantes!

Um argumento relativamente frequente e particularmente engraçado em defesa da superioridade humana é a nossa capacidade de falar. E o que é que achamos que os porcos acham da nossa incompetência a grunhir ou a descodificar os grunhidos deles? Que pensarão os morcegos, golfinhos e outros animais da nossa total incapacidade de ecolocalização? Que pensarão da nossa dependência da fala seres capazes de comunicar telepaticamente? (Possivelmente seres humanos; eu acho que até comunico telepaticamente de vez em quando, talvez o equivalente ao que fala um bebé de 1 mês?) Considerar a capacidade de falar especial é o equivalente a eu achar especial ser o único humano que tem um blog chamado bulicenas – não tem nada de especial para além do facto de ser uma característica minha.


Salvem os amigos do homem!

Nestas reflexões, não pude deixar de recordar uma notícia que li há meses, sobre dois restaurantes em São Paulo (Brasil), fechados por servirem carne de cão.

Que raio de notícia é essa? O que é que um cão tem de especial que uma galinha, um porco ou uma vaca não tem? Notícia mais interessante seria talvez “Restaurante fechado por servir carne”? (Sendo justo, na notícia de São Paulo, além da proibição discriminatória contra o consumo de carne canina, parecia haver legítimas preocupações de higiene alimentar.)

Especismo (preferência por uma espécie em detrimento de outras) não me parece se não uma variante – igualmente irracional e questionável – de racismo. Curiosamente, muitas pessoas condenam o racismo entre humanos, mas não têm sequer consciência de que exista especismo, e muito menos de que seja algo questionável.


Salvem os animais!

A generalização para “salvem os animais” (não só as baleias, golfinhos, cães, gatos e outros animais favoritos) parece-me positiva, não deixando de ser muito provavelmente uma forma de antropocentrismo: os animais são preferíveis aos não animais... porque são mais parecidos com o ser humano.

É interessante e até divertido (e também desapontador) como os argumentos da PETA (People for the Ethical Treatment of Animals – organização de defesa dos direitos animais) para proteger os animais são tão focados nas características “humanas” dos animais (p.ex., galinhas, porcos, peixes, vacas, perus, patos e gansos): são curiosos, inteligentes, sociáveis, amigáveis, leais, afectivos, sensíveis, solidários, monógamos, têm personalidade, memória, capacidade de resolver problemas... (Ver também “10 factos fascinantes sobre porcos”.)

Aquilo que é parecido connosco deve ser protegido. O que é diferente não importa? Parece um critério bem objectivo e racional... ou talvez não?

Devemos tratar os outros (humanos ou não) como
a) nós queremos ser tratados, ou
b) como eles querem ser tratados?

Eu voto “b” (o que não quer dizer que eu seja particularmente habilidoso a agir de acordo com essa convicção – sempre muito a melhorar!!). Mas, olhando para o mundo, diria que já não seria mau se os tratássemos como nós queremos ser tratados.

A PETA tem bons vídeos (p.ex., este) para nos fazer pensar se queremos ou não pactuar com o tratamento que damos aos animais. Não me parece válida a desculpa de que não somos nós que maltratamos os animais – só os compramos no supermercado, limpinhos e embaladinhos! Então se eu pagar a um assassino para fazer desaparecer do mapa alguém de quem não gosto não deve haver problema nenhum, certo?


Salvem as baratas!

Confesso que não gosto de baratas. Em algum momento da minha vida programei a minha cabeça para acreditar que elas são nojentas, perigosas para a saúde e merecem morrer, e ainda não consegui desprogramar-me totalmente (na mesma ordem de ideias acho que poderia mais facilmente convencer-me de que muitos humanos merecem morrer... e assim de repente não me parece bem). Elas abundam em Singapura. Voam bastante e facilmente entram pela janela do 22º andar. Às vezes tento expulsá-las de casa sem as matar (há dias consegui pela primeira vez pegar numa com a mão e atirá-la pela janela!), mas geralmente perco a paciência e acabo por estonteá-las (muitas vezes definitivamente...) com uma chinelada. Talvez um dia destes eu faça um documentário “Salvem as Baratas” para me redimir?




Salvem os seres vivos!

Então e se generalizarmos ainda mais para “salvem os seres vivos”? Vamos incluir também as plantas, fungos, bactérias... e outros seres vivos (peço desculpa mas não me lembro das classificações discutidas nas aulas de Ciências da Natureza há demasiados anos atrás). Bastante mais abrangente, não? Excelente!

Não deixa de ser provavelmente algo antropocêntrico: decidi estender a protecção a outros seres vivos... porque sendo eu um ser vivo tendo a acreditar que um ser vivo é melhor, mais importante, superior à matéria inerte (ou à não-matéria!).

Será necessariamente assim? Claro que não. Mas concordo que parece mais fácil adivinhar como outro ser vivo “quer” ser tratado (pelo menos é provável que queira continuar vivo?), do que como um objecto inerte ou algo imaterial “quer” ser tratado. Será que um calhau se importa se for despedaçado? Ou se passar a formar parte de um prédio? Não faço a mínima ideia. Nem faço ideia de como poderia investigar.

Então talvez “salvem os seres vivos” não seja um mau slogan... Pelo menos parece-me bem melhor do que o simples e míope “salvem os humanos”, que por sua vez já é muito melhor do que “salvem a minha família”, e infinitamente melhor do que “salvem o Buli”.


Origens das crenças

Não sei se estas ideias antropocêntricas são “naturais”. Parece haver algo de natural e espontâneo na tendência de ver o mundo centrado no meu umbigo, de acordo com as minhas bitolas. Mas natural não significa necessariamente bom. Nem justificável.

Também me parece que o contexto em que vivemos, a cultura, as mensagens que transmitimos uns aos outros, têm um papel fundamental na formação das nossas crenças.

Por exemplo [desculpem as mentes mais impressionáveis – fiquem à vontade para saltar o resto deste parágrafo], acredito fortemente que se eu tivesse crescido numa sociedade em que fosse habitual (e portanto “normal” e “natural”) as pessoas alimentarem-se de outras pessoas, se a minha mãe me tivesse servido desde tenra idade (quando eu mal percebia quem/o que eu era e o que era o mundo) coxinhas e bracinhos tenrinhos de outros meninos (a la Delicatessen - filme altamente recomendável!)... eu teria achado durante muito tempo normal, natural, aceitável, inquestionável, provavelmente até saudável e recomendável, comer carne humana. A minha mãe é boa pessoa e claro que não fez uma coisa dessas. Mas deu-me carne de galinha, de porco, de vaca, de cabrito, de coelho, etc. E eu cresci a achar natural comer tudo isso. E quando percebi como viviam e morriam as galinhas, porcos, vacas, cabras, coelhos, etc., acredito que não me tenha parecido excelente, mas rapidamente justifiquei que era necessário, para que nós, humanos, nos pudéssemos alimentar. E consegui durante bastante tempo deixar essa informação num canto do cérebro (“Não toques aí que isso desmorona tudo!!”).

O mais chato é que as crenças parecem formar-se cedo na nossa vida, e quando chegamos a uma idade mais consciente arriscamos nem perceber que elas existem. Simplesmente aceitamo-las como a verdade.

Na cultura judaico-cristã em que fui criado vejo muitos vestígios do conceito de “povo escolhido” que não me parecem saudáveis. Acho que consegui desprogramar grande parte, mas certamente não 100%. É um trabalho constante de me tornar consciente daquilo em que acredito. A ideia bíblica de que deus escolheu o povo judeu tende a ser hoje interpretada talvez mais como “deus escolheu o ser humano” (ainda muito míope, mas ao menos na direcção certa). Mas na maioria das culturas religiosas parece ainda muito difundida – até entre religiosos – a ideia mais perigosa (porque pode levar a comportamentos geradores de infelicidade) de que “deus escolheu o ser humano que professa a minha religião”. Deus, cá para mim, não escolhe ninguém. Escolher é algo que os humanos (e outros seres vivos) fazem. Ao dizer que deus escolhe estou, como de costume, a humanizá-lo.


E então?

Esta bulicena é afinal um apelo a quê? Como todas as bulicenas, primeiro que tudo é uma forma de eu tentar organizar algumas ideias para mim próprio. Mas também pode ser um apelo a que sejamos conscientes (1) daquilo em que acreditamos, de forma explícita ou não, (2) das acções que decidimos tomar devido às nossas crenças, e (3) das consequências dessas acções. É um apelo à responsabilização.

Será um apelo ao vegetarianismo? Vejo muitas razões para ser vegetariano (económicas, ecológicas, éticas, de saúde, bem-estar, compaixão, ... bom tema para umas bulisofias) e poucas para não o ser (preguiça?). Praticamente não como carne há três anos e acho que como (pouco) peixe mais por preguiça de procurar alternativas quando não estão tão à mão (e concordo que preguiça é uma terrivelmente vergonhosa explicação para não viver da forma que me parecer melhor). As razões iniciais para não comer carne foram de bem-estar (a carne provoca facilmente digestão lenta e barriga pesada!), após uma overdose no sul do Brasil. Em algum momento comecei a pensar na questão ética que motiva tantos vegetarianos... e concluí que não me parecia bem não ser capaz de matar uma galinha, porco ou vaca mas aceitar pagar a alguém para fazer o trabalho sujo por mim. Como já comentado, não muito diferente de pagar a alguém para matar uma pessoa que não me dá jeito que continue viva.

Esperando que me ajude a ser melhor e mais feliz e a espalhar mais felicidade, escolho acreditar que:

  • É bom viver em maior harmonia, em equilíbrio com o mundo

  • Não matar é melhor, mais harmonioso, equilibrado do que matar

  • Maltratar pode ser pior do que matar

  • Matar um ser vivo é matar, independentemente do ser

  • Matar indirectamente não é diferente de matar directamente (é só mais cobarde e/ou conveniente)

  • Matar indirectamente não inclui apenas que alguém mate por mim mas também todas as mortes para as quais a minha existência contribui (p.ex., morte de árvores cortadas para construir o prédio onde vivo)

  • Matar em conjunto ou cumplicidade com outros continua a ser matar

Como é que estas crenças deveriam afectar as minhas acções?

  • É minha responsabilidade investigar o que é feito por minha causa (p.ex, seres que são maltratados ou mortos para serem produzidos bens ou serviços que eu utilizo) e fazer escolhas que minimizam o meu mau impacte no mundo. Não estou a ponderar o suicídio (rápida solução para evitar que a minha existência contribua para mais mortes – seria a última... esperando que o impacte do funeral não fosse pesado), nem a conversão ao jainismo (que não deixa de poder servir de excelente inspiração), nem deixar de viver porque não sei quanto mal posso provocar. Mas acredito que posso procurar viver sempre de forma mais responsável.

  • Não devo maltratar ou matar desnecessariamente (tremendo discernimento: o que é “necessário”??), por isso devo estar atento não só às minhas acções conscientes mas também às opções imponderadas e a reflexos estúpidos como pisar um insecto, matar uma barata, etc.

  • Talvez as ideias veganistas sejam uma boa referência? Algo a analisar.

Algumas perguntas mais difíceis:

  • Quão maltratadas são as vacas que produzem o leite que bebo, as galinhas que produzem os ovos que como? Deveria parar de consumir esses produtos para não incentivar tais indústrias? Suspeito que sim...

  • É justo, bom, aceitável matar em auto-defesa ou em defesa de outros seres? Que seres e em que situações? O mosquito que talvez me pique ou a outras pessoas e transmita uma doença grave como malária ou dengue? O soldado que vai carregar no botão para lançar a bomba nuclear? O líder que promove ideias e medidas xenófobas, racistas, especistas, poluidoras, belicistas, etc. – geradoras de desequilíbrio? Toda a espécie humana, que, com o seu ímpeto monopolizador do mundo e respectivos recursos, raramente parece contribuir para um mundo equilibrado?

Hmm... acho que vou mandar algumas destas questões para um canto do cérebro antes que desmorone tudo!